Vida Real

11 – Márcia Anália e a Luta de uma Mãe por Justiça

Márcia Anália - Aos 23 anos, Márcia Anália teve a vida brutalmente interrompida pelo marido. Sua mãe, Valéria Felizardo, transforma o luto em uma incansável busca por justiça, expondo as feridas de um país que falha em proteger suas mulheres

Márcia Anália – O silêncio daquela noite de abril de 2024 em Parnamirim, na região metropolitana de Natal, foi quebrado por um grito que ecoaria por todo o país. Era o grito de uma mãe, Valéria Felizardo, ao encontrar o corpo de sua única filha, Márcia Anália, de 23 anos, em uma cena de horror indescritível.

A jovem, que sonhava em ser enfermeira para cuidar dos outros, jazia sem vida, de bruços, com uma faca cravada nas costas, em um “oceano” do seu próprio sangue. O autor do crime, segundo a justiça, foi seu próprio marido, Josué, o homem que Valéria um dia considerou como um filho.

O assassinato de Márcia Anália não é um número frio em uma estatística, embora as estatísticas sejam aterradoras. Em 2024, o Brasil atingiu o recorde de 1.492 feminicídios, uma média de quatro mulheres mortas por dia, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública [1].

A história de Márcia é o rosto por trás desses números, a personificação de uma tragédia nacional que se repete com uma frequência alarmante. É a história de uma vida promissora ceifada pela violência de gênero e a jornada de uma mãe que, em meio à dor lancinante, ergue a voz para lutar por justiça e para que a memória de sua filha não seja em vão.

Conheça a história de Márcia Anália, na luta incansável de sua mãe, Valéria, e na complexa teia que envolve a violência contra a mulher no Brasil. Através do depoimento comovente de Valéria, dos dados que expõem a dimensão da crise e da análise do sistema de justiça e proteção, buscamos entender por que o lar, que deveria ser o lugar mais seguro para uma mulher, tantas vezes se torna o cenário de sua morte. É um convite a ouvir o grito que não se cala, o grito por Márcia e por todas as outras.


A Rosa Interrompida: Quem foi Márcia Anália

“Uma Menina Espetacular”

“Ela não foi, ela é. Ela é uma rosa”. É assim que Valéria Felizardo começa a descrever a filha. Nas palavras da mãe, Márcia Anália florescia. Era uma jovem de 23 anos cuja presença irradiava bondade e alegria.

“Uma menina espetacular, uma menina bondosa, uma menina obediente, uma menina temente a Deus, uma menina muito amada, muito querida”, conta Valéria, com a voz embargada pela saudade. Não era apenas a percepção de uma mãe coruja; amigos e colegas de trabalho compartilhavam da mesma admiração.

O grande propósito de Márcia era servir. Cursava o técnico de enfermagem não por tradição familiar – a mãe é professora, o pai, chefe de cozinha – mas por uma vocação genuína.

“Eu tenho um desejo muito grande de servir aqueles que mais necessitam”, dizia ela. Seu sonho ia além: “O meu maior desejo é cuidar da minha mãe, assim como ela cuidou de mim. E essa profissão vai fazer com que eu dê amor, mais amor ainda à minha mãe, e que dê os cuidados necessários quando de mim ela precisar”. Márcia planejava ser o amparo de Valéria na velhice, uma retribuição de amor e cuidado que lhe foi brutalmente negada.

Essa relação de profunda conexão e cumplicidade era o alicerce da vida de ambas. Valéria, que perdeu a mãe e o pai, encontrou em Márcia a força para continuar. “Eu só sobrevivi porque eu tinha a minha filha. Eu precisava viver por ela”, relembra.

Cada conquista de Valéria, como a aprovação em um concurso público, era motivada pelo desejo de proporcionar o melhor para Márcia. Eram sonhos sonhados em conjunto, uma vida inteira tecida a duas mãos, desfeita de forma abrupta e cruel.

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O Ciclo Silencioso da Violência

Para o mundo, o casamento de Márcia Anália com Josué, um vigilante que pregava em uma igreja evangélica, parecia harmonioso. “Aparentemente o relacionamento era bom, com respeito”, diz Valéria. Mas por trás dos sorrisos constantes de Márcia, uma realidade sombria se escondia. “Não existia dias ruins para minha filha, não existia tristeza, ela estava sempre sorrindo, sempre sorrindo”. Esse sorriso, hoje Valéria entende, era um véu que encobria o medo e a dor.

O primeiro rasgo nesse véu veio de forma física e inequívoca. Certo dia, Márcia bateu na janela do quarto da mãe, que morava na casa ao lado, com o rosto sangrando. “O que foi isso?”, perguntou Valéria, assustada. A resposta foi um sussurro que mudaria tudo: “Foi Josué”. A mãe, em choque, imediatamente quis agir. “Rapidamente eu fui socorrer minha filha, pulei o muro, limpei, coloquei gelo e chamei ela para ir denunciar”.

A reação de Márcia é um retrato doloroso da complexidade da situação da vítima de violência doméstica. Ela se recusou a ir à delegacia. “Não, mãe, eu vou me separar, eu não quero mais nada com ele. Isso não vai mais acontecer, eu prometo à senhora que eu vou me separar”. A promessa, no entanto, não se cumpriu. Após um tempo na casa da mãe, Márcia voltou para o marido. A justificativa, carregada de uma lógica perversa imposta pelo ciclo da violência, paralisou Valéria: “Mãe, é melhor eu morar aqui com ele do que a gente alugar um canto e sair”.

Valéria se viu em um dilema angustiante. Proibir a volta de Josué poderia significar o afastamento da filha, que talvez fosse morar com ele em um lugar distante, longe de qualquer possibilidade de socorro.

“Eu pensei que ali teria sido a primeira vez e que se eu não permitisse ele voltar, ela iria sair com ele e que aonde ela fosse morar com ele, talvez ele fosse continuar agredindo ela. Eu pensei em agressão, jamais eu pensei em matar”. Acreditando que sua presença poderia inibir o agressor, ela permitiu que o algoz de sua filha voltasse para casa. Menos de dois meses depois, a agressão seguinte não seria apenas uma briga, seria a execução.


Uma Morte Anunciada

A rotina de trabalho intenso de mãe e filha mascarou os últimos dias de Márcia. Valéria, professora, saía de casa antes do amanhecer. Márcia, vendedora em um shopping, chegava tarde da noite. A comunicação era constante, mas a distância física em alguns momentos abriu a brecha para a tragédia. Na terça-feira, Valéria chegou em casa e presumiu que a filha estivesse em seu turno de trabalho. Adormeceu sem a mensagem de boa noite da filha.

A quarta-feira trouxe o presságio. Por volta das 21h30, a gerente da loja onde Márcia trabalhava ligou para Valéria. “Márcia está bem?”, perguntou. “Desde ontem que ela não vem trabalhar”. O chão se abriu sob os pés de Valéria. “Eu vou lhe pedir meia hora para eu achar a minha filha”, disse ela, já em desespero. Em uma corrida frenética de moto-uber, ela ligava para parentes e vizinhos, pedindo que chamassem por Márcia no muro que dividia as casas.

Ao chegar, a única alternativa era pular o muro. Mas havia um obstáculo a mais: os dois rottweilers que o casal criava, treinados por Josué para atacar. “Não pula, os rottweilers vão lhe atacar!”, gritavam as pessoas. Mas a força de uma mãe em busca de sua filha é imensurável. “Nós, mães, nós pulamos uma cova com mil leões, por que não vai pular um muro com dois Rottweilers?”, reflete Valéria. Antes de pular, uma ligação para a família de Josué. A negativa de saberem de Márcia e o nervosismo ao ouvirem a palavra “polícia” foram o último sinal. Valéria pulou.

Os cães, para surpresa de todos, não a atacaram.

“Os rottweilers vieram em minha direção, pararam, me olharam e seguiram”. Ela os seguiu. E então, a cena que nenhuma mãe deveria presenciar. “Quando eu vi aquilo ali, eu imaginei: meu Deus do céu, quem é essa menina? Como é que eu vou explicar isso para a mãe dessa menina?”. A negação foi o primeiro instinto.

Ela se abaixou, cheirou o cabelo da filha. Era Márcia. Deitada de bruços, “a caminho da porta, como se ela fosse correr”, com uma faca cravada nas costas e rodeada por uma poça de sangue que já exalava o odor da morte. Ao lado do corpo, fiel, uma pequena cachorrinha que ela criava. “Foi aonde meu mundo desabou. Foi aonde minha vida acabou”.

“A violência contra as mulheres é uma violação dos direitos humanos e uma consequência da desigualdade de gênero. Atinge as mulheres em todas as esferas da vida e em todas as fases da vida. A violência contra as mulheres é evitável.” – ONU Mulheres

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Um País que Mata suas Mulheres

O assassinato de Márcia Anália é um espelho que reflete uma imagem distorcida e brutal da sociedade brasileira. A dor de Valéria Felizardo ecoa a de milhares de outras famílias que perderam suas filhas, mães e irmãs para a violência de gênero.

O crime, longe de ser um ato isolado de paixão ou descontrole, é a ponta de um iceberg de uma cultura machista estrutural que culmina na forma mais extrema de violência: o feminicídio. Analisar os números e o contexto é fundamental para compreender a dimensão desta crise humanitária.

Brasil, 2024: Um Recorde Macabro

O ano de 2024 entrou para a história do Brasil como o mais letal para as mulheres desde a tipificação do crime de feminicídio em 2015. Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública são um soco no estômago: 1.492 mulheres foram assassinadas simplesmente por serem mulheres, um aumento de 0,7% em relação ao ano anterior [1].

Isso significa que, a cada seis horas, uma mulher teve sua vida interrompida. A taxa de 1,4 mortes por 100 mil mulheres coloca o Brasil em uma posição vergonhosa no cenário internacional, figurando entre os países mais perigosos para o sexo feminino.

O perfil das vítimas revela as intersecções de vulnerabilidade que potencializam o risco. A maioria esmagadora, 63,6%, era de mulheres negras, evidenciando como o racismo e o machismo se entrelaçam para criar uma tempestade perfeita de opressão.

A faixa etária mais atingida é a de 18 a 44 anos (70,5%), mulheres em plena capacidade produtiva, com sonhos e projetos de vida. O lar, que deveria ser um refúgio, é o cenário do crime em 64,3% dos casos, e o agressor, em quase 80% das vezes, é o próprio companheiro (60,7%) ou ex-companheiro (19,1%). A arma do crime, em quase metade dos casos (48,4%), é a faca, um objeto doméstico transformado em instrumento de morte, como no caso de Márcia Anália.

Em uma tentativa de resposta, a legislação foi endurecida. A Lei nº 14.994, sancionada em outubro de 2024, tornou o feminicídio um crime autônomo e elevou a pena para 20 a 40 anos de reclusão. Contudo, especialistas alertam que o foco exclusivo no aumento da punição pode desviar a atenção de políticas de prevenção, essenciais para interromper o ciclo de violência antes que ele chegue ao seu desfecho fatal. A subnotificação ainda é um fantasma que assombra as estatísticas, tornando o cenário real potencialmente ainda mais grave.

 

Indicador de Feminicídio no Brasil Dados de 2024 Variação (2023-2024)
Número de Vítimas 1.492 + 0,7%
Taxa por 100 mil mulheres 1,4 + 0,7%
Vítimas Negras 63,6%
Local do Crime (Residência) 64,3%
Autor (Companheiro/Ex) 79,8%

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2025.

Rio Grande do Norte: Entre a Queda e a Explosão de Tentativas

O Rio Grande do Norte, estado onde Márcia Anália foi assassinada, apresenta um panorama complexo e paradoxal. Em 2024, o número de feminicídios consumados registrou uma queda de 21,1%, passando de 24 para 19 casos [2].

A taxa de 1,1 por 100 mil mulheres ficou abaixo da média nacional. No entanto, essa aparente melhora é ofuscada por um dado alarmante: as tentativas de feminicídio explodiram, com um aumento de 71,3% no mesmo período, saltando de 39 para 67 casos. Essa foi a terceira maior variação do país, quase quatro vezes superior à média nacional (19%).

Essa discrepância levanta questionamentos urgentes. A queda nos crimes consumados pode indicar uma maior eficácia das medidas protetivas e da resposta policial imediata, que conseguem intervir antes da morte? Ou seria um sinal de subnotificação, com casos sendo registrados sob outras tipificações? Por outro lado, o aumento vertiginoso das tentativas sugere que a violência está mais explícita e brutal. O caso da mulher agredida com mais de 60 socos em um elevador em Natal, que ganhou repercussão nacional, ilustra essa escalada de fúria.

Outros indicadores de violência contra a mulher no estado também apontam para uma curva ascendente. As tentativas de homicídio contra mulheres cresceram 19,2%, os casos de lesão corporal dolosa em contexto doméstico subiram 3,3%, e a perseguição (stalking) aumentou 11,6% [2].

O número de registros de violência doméstica como um todo cresceu 7,5%. O cenário potiguar, portanto, é de alerta máximo, mostrando que, apesar de alguns avanços, a cultura da violência persiste e se manifesta de formas cada vez mais agressivas.

A Lei Maria da Penha: Entre a Esperança e a Ineficácia

Sancionada em 2006, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340) é um marco na luta contra a violência doméstica no Brasil e reconhecida internacionalmente. Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) apontou que a lei foi responsável por uma diminuição de cerca de 10% na taxa de homicídios contra mulheres dentro das residências [3]. A criação de mecanismos como as medidas protetivas de urgência e os juizados especializados representou uma esperança para milhares de mulheres.

No entanto, quase duas décadas depois, a efetividade da lei é constantemente questionada. A história de Márcia Anália, que teve medo de denunciar, e a de tantas outras que, mesmo com medidas protetivas, acabam mortas, mostram que há uma lacuna entre o que a lei prevê e a realidade. A crítica de Valéria Felizardo ao sistema de justiça é contundente. A condenação de Josué a 19 anos de prisão, considerada branda pela família diante da crueldade do crime, e o medo da progressão de regime, que pode colocar o assassino de sua filha de volta às ruas em pouco tempo, alimentam a sensação de impunidade.

“Os assassinos, eles não cumprem a pena em sua totalidade porque existe algo chamado progressão de regime. Quem criou? Por que criou?”, questiona Valéria. Sua dor é a dor de quem se sente condenado duas vezes: uma pelo assassino e outra pelo sistema.

“Eu estou na prisão perpétua. Eu não tenho, nem eu e nenhuma mãe, nenhuma família enlutada, o direito a ver o assassino cumprir em sua totalidade a condenação que lhe foi dada”. Especialistas corroboram essa percepção, apontando para a necessidade não apenas de uma aplicação mais rigorosa da lei, mas de um investimento maciço em políticas de prevenção, educação e amparo às vítimas, para que a denúncia seja uma opção segura e o ciclo da violência seja, de fato, rompido.

“O Estado não pode se eximir de sua responsabilidade. A omissão do Estado também mata.” – Maria da Penha

 


A Falha do Estado e o Clamor por Justiça

A tragédia que se abate sobre uma família após um feminicídio não termina com o crime. Ela se desdobra em um luto profundo, em traumas psicológicos e em uma batalha extenuante contra um sistema que, muitas vezes, se mostra indiferente e falho. A jornada de Valéria Felizardo após a morte de Márcia Anália é um testemunho contundente do abandono que as vítimas indiretas da violência sofrem. É a história de uma mãe que, além de lidar com a perda irreparável, precisa lutar por apoio, por justiça e até mesmo pelo direito à memória de sua filha.

O Abandono das Famílias: A Dor Pós-Crime

Imediatamente após o assassinato de Márcia, Valéria foi consumida por uma dor que a paralisou. O suporte psicológico e psiquiátrico tornou-se uma necessidade urgente para sua sobrevivência. Foi nesse momento que ela se deparou com a primeira grande falha do Estado: a ausência de amparo à saúde mental. Em Parnamirim, um município de porte considerável, não havia um único psiquiatra disponível no Sistema Único de Saúde (SUS).

“Eu não cometi o suicídio porque eu paguei, porque pessoas me ajudaram, o tratamento com psiquiatra”, desabafa Valéria. “Se eu não tivesse, por hipótese alguma, conseguido um psiquiatra particular, onde eu estaria hoje? E como eu estaria hoje?”

Sua situação expõe uma realidade cruel e generalizada. Enquanto o Estado foca (de maneira insuficiente) em políticas de segurança e punição, a saúde mental das famílias devastadas pela violência é relegada a um segundo plano. Valéria arca com os custos de seu tratamento e dos medicamentos, um fardo financeiro que se soma ao peso emocional. Apenas mais de um ano após o crime, o município contratou um psiquiatra, um profissional para atender a uma demanda reprimida de toda uma cidade. É uma gota d’água em um oceano de necessidade.

A sensação de desamparo é amplificada pela indiferença de outras esferas. Valéria questiona a atuação dos Direitos Humanos, que em nenhum momento a procuraram.

“Sua fala entra na íntegra: os direitos humanos te ajudaram, te procuraram, estiveram do seu lado em algum momento?”, pergunta a entrevistadora. A resposta de Valéria é um sonoro e doloroso “Não, de jeito nenhum”. As políticas públicas existentes, como a Casa da Mulher Brasileira e os Centros de Referência, são vitais, mas se mostram insuficientes para acolher a complexidade da dor das famílias enlutadas, que necessitam de um apoio contínuo e específico que o sistema atual não oferece.

“E se fosse sua filha?”: Um Recado ao Congresso

Quando questionada sobre o que diria aos deputados e senadores do Congresso Nacional, a voz de Valéria se transforma em um trovão, um clamor que carrega a dor de todas as mães que choram a perda de suas filhas. Sua mensagem é direta, visceral e profundamente política. Ela não pede, ela exige uma reflexão que transcende a abstração das leis e dos números.

“E se fosse sua filha? E se fosse seu filho? Existe a possibilidade de que vocês possam pensar, criar, sancionar alguma lei que beneficie as vítimas e as famílias enlutadas que já perderam o seu bem maior, que já sofreram as duas condenações: a condenação à pena de morte e, para as famílias enlutadas, a condenação máxima também, a prisão perpétua.”

Nesse discurso, Valéria inverte a lógica do sistema penal. Ela argumenta que a verdadeira prisão perpétua não é a do criminoso, mas a da família que fica. Enquanto o assassino de sua filha tem a perspectiva de progressão de regime e, eventualmente, da liberdade, ela e sua família estão condenadas a uma sentença eterna de ausência e dor. “Nós não temos sequer o direito a ver o assassino cumprir em sua totalidade a condenação que lhe foi dada. Nós não temos esse direito, mas sem cometer nenhum crime”, protesta.

Sua fala é uma crítica feroz à impunidade percebida, um sentimento que corrói a confiança na justiça. A possibilidade de redução de pena para um crime cometido com requinte de crueldade é, para Valéria, um insulto à memória de sua filha e um sinal perigoso para a sociedade.

“A pena da minha filha, e a minha, e de muitos, quem vai reduzir?”, ela pergunta, deixando no ar uma questão que o sistema de justiça brasileiro parece incapaz de responder. Seu recado é um chamado à empatia e à responsabilidade, para que os legisladores abandonem a distância burocrática e legislem com a consciência do impacto real de suas decisões na vida das pessoas.

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A Burocracia da Memória

A luta de Valéria Felizardo não se restringe aos tribunais e aos consultórios. Ela se estende a uma batalha simbólica, mas não menos importante: a luta pela memória de Márcia Anália. Em uma tentativa de transformar a dor em um legado de conscientização, um parlamentar de Parnamirim propôs que a “Sala Lilás” do município – um espaço destinado ao apoio a mulheres – fosse renomeada em homenagem à sua filha.

A proposta foi aprovada por unanimidade na Câmara dos Vereadores em três votações. Um gesto de reconhecimento e solidariedade da comunidade política local. No entanto, a homenagem esbarrou na burocracia e naquilo que Valéria percebe como indiferença do poder executivo. “Nós estamos esperando até agora a sanção da prefeita do município”, conta ela, com uma ponta de frustração.

A ironia, aponta Valéria, é que a gestão municipal é comandada por duas mulheres, uma prefeita e uma vice-prefeita, que, segundo ela, nunca a procuraram, mesmo com a comoção que o caso gerou em todo o estado. “O feminicídio chocou todo o estado, e a minha filha é filha natural de Parnamirim. Nasceu, cresceu e morreu em Parnamirim”. A demora em sancionar uma homenagem aprovada de forma unânime é vista não apenas como um entrave burocrático, mas como um reflexo da falta de sensibilidade e de compromisso com a causa.

Lutar para que o nome de Márcia Anália não seja esquecido, para que ele batize um local de acolhimento a outras mulheres, é uma forma de ressignificar a tragédia. É uma tentativa de garantir que sua morte não seja apenas mais uma estatística, mas um marco na luta contra a violência de gênero na cidade. A lentidão do poder público em oficializar essa memória é, para a mãe, mais uma faceta da falha do Estado, que se mostra lento e insensível até mesmo na hora de honrar suas vítimas.

“O silêncio não pode ser opção. Denunciar salva vidas e exige responsabilidade política. A violência acaba, a vida recomeça.” – Maria da Penha

 


Entre a Gratidão e o Perdão – O Futuro da Luta

No final de sua jornada de luto e luta, Valéria Felizardo se depara com um sentimento complexo e doloroso, um que assombra muitas mães que perdem seus filhos para a violência. É o “e se?”. Ela se questiona incessantemente se deveria ter agido de outra forma, se poderia ter evitado o desfecho trágico.

“Quando aconteceu aquele episódio que eu falei no início, dele ter machucado e eu ter insistido tanto pra denunciar, e minha filha não quis, eu deveria ter ido sem ela, sabe?”, confessa. É um fardo de culpa que ela carrega, mesmo que a psicóloga que a acompanha insista que nada garantiria um resultado diferente. Talvez, a denúncia forçada apenas acelerasse o crime ou o levasse para um lugar mais distante e desprotegido.

Em meio a essa tormenta, a palavra que Valéria mais anseia em dizer a Márcia, no dia em que se reencontrarem, é “perdão”. Perdão por não ter conseguido protegê-la, por não ter quebrado o ciclo à força. É um pedido que nasce do amor incondicional de uma mãe, mas que, na realidade, deveria ser feito pelo Estado. É o Estado que deve pedir perdão a Valéria, a Márcia e a todas as famílias por sua falha em garantir o direito mais fundamental: o direito à vida.

O caso de Márcia Anália não é uma aberração, mas um sintoma agudo de uma patologia social crônica. Sua história, entrelaçada aos dados alarmantes de feminicídio no Brasil e à evidente falha sistêmica na proteção às mulheres e no amparo às suas famílias, desenha o retrato de uma nação em crise. A impunidade percebida, as penas brandas, a falta de apoio psicológico e a indiferença burocrática são os tijolos que constroem o muro de desconfiança entre os cidadãos e a justiça.

O grito de Valéria Felizardo – “E se fosse sua filha?” – deve ecoar nos corredores do poder, nas salas de aula, nas conversas familiares. Ele nos convoca a uma responsabilidade coletiva. A luta contra o feminicídio não é apenas uma questão de polícia ou de justiça; é uma questão de educação, de cultura, de empatia. É preciso ensinar aos meninos o respeito, empoderar as meninas para que reconheçam e rejeitem relacionamentos abusivos, e construir uma rede de apoio que acolha as vítimas sem julgamentos.

A dor de Valéria se transformou em uma força motriz, e sua determinação em buscar justiça inspira a mudança. Sua luta é por Márcia, para que sua memória seja honrada, e por todas as outras mulheres, para que seus futuros não sejam interrompidos. A jornada é longa e árdua, mas a mensagem final, emprestada da própria Maria da Penha, é um farol de esperança e um chamado à ação: “O silêncio não pode ser opção. Denunciar salva vidas”. A violência pode ter encerrado a vida de Márcia, mas a luta por ela e por tantas outras apenas recomeça, a cada dia, na voz de mães como Valéria, que se recusam a deixar o silêncio vencer.

 


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Referências

[1] Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (2025). Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Recuperado de https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil/feminicidio-bate-recorde-no-brasil-em-2024-diz-estudo/

[2] Tribuna do Norte. (2025). Com aumento de 71%, RN tem terceira maior variação em tentativas de feminicídio no Brasil. Recuperado de https://tribunadonorte.com.br/rio-grande-do-norte/com-aumento-de-71-rn-tem-terceira-maior-variacao-em-tentativas-de-feminicidio-no-brasil/

[3] Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). (2015). Avaliando a Efetividade da Lei Maria da Penha. Recuperado de https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/dados-e-fontes/pesquisa/avaliando-a-efetividade-da-lei-maria-da-penha-ipea-2015/

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