5- A Sombria História de Mary Bell
Mary Bell - Abusada na infância, se tornou uma das mais jovens assassinas da história

Mary Bell que aos 11 anos se tornou uma assassina mundialmente conhecida carrega uma história de abusos extremos, abandonos e até tentativa de assassinato por parte de sua mãe. Mary Bell é fruto de uma infância traumática.
O estresse crônico desencadeado por abusos ativa o Eixo HPA (Hipotalâmico-Pituitário-Adrenal), que é o sistema de resposta ao estresse do corpo. Em uma situação de perigo real, ele libera hormônios como o cortisol para nos preparar para lutar ou fugir.
Em uma criança que vive em um ambiente de abuso, esse sistema está constantemente ativado, o que é conhecido como estresse tóxico. Com o tempo, essa exposição excessiva a hormônios do estresse afeta o desenvolvimento de várias regiões cerebrais, deixando o cérebro em um estado de “alerta máximo” mesmo quando não há perigo.
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O trauma na infância também afeta as “estradas” que conectam diferentes partes do cérebro. A conexão entre o Córtex Pré-frontal (que pensa e planeja) e a Amígdala (que sente medo) pode se tornar mais fraca. Isso significa que a parte do cérebro que deveria ser capaz de acalmar a resposta de medo não consegue fazer isso de forma eficaz, resultando em um ciclo vicioso de descontrole emocional.
O Rosto Angelical do Mal
Em 1968, a Inglaterra e o mundo foram confrontados com uma verdade aterrorizante: a maldade não tem idade. A imagem de uma menina de cabelos escuros e olhos penetrantes, Mary Flora Bell, estampou os jornais, não por um feito infantil, mas por ser a autora de dois assassinatos brutais.
Com apenas dez e onze anos, ela tirou a vida de duas crianças pequenas, Martin Brown e Brian Howe, em Scotswood, um bairro operário de Newcastle upon Tyne. O caso de Mary Bell a ficção policial para se tornar um marco sombrio na criminologia e na psicologia, forçando a sociedade a questionar a natureza da inocência infantil e a capacidade de uma criança para cometer atos de crueldade extrema.
Esta não é apenas a história de true crime de crianças perversas, mas uma explicação de como forjar um monstro em um corpo de criança. A trajetória de Mary Bell, desde sua infância devastadora até sua vida adulta sob anonimato, levanta questões sobre culpa, reabilitação e as cicatrizes indeléveis do trauma.
Uma Infância Roubada: Abusada, prostituída e torturada
Para compreender os atos de Mary Bell, é imperativo estudar sua infância, um período marcado não por brincadeiras e afeto, mas por um ciclo incessante de abuso, negligência e horror. Mary nasceu em 26 de maio de 1957, filha de Betty McCrickett, uma mulher que, segundo todos os relatos, era a antítese de uma figura materna.
Betty era uma prostituta que frequentemente viajava para Glasgow para trabalhar, deixando a filha para trás em um ambiente de instabilidade e perigo. A identidade do pai biológico de Mary sempre foi uma questão de incerteza, embora ela tenha crescido acreditando que seu pai era William “Billy” Bell, um alcoólatra violento e criminoso habitual.
Mary Bell, segundo relatos, é resultado de um estupro e desde o início sua vida foi marcada pela rejeição. Betty tentou se livrar da filha centenas de vezes, inclusive tentando vendê-la. Há relatos de que Betty teria tentado matar Mary em várias ocasiões, tratando a existência da filha como um fardo insuportável.
A casa dos Bell era um cenário de caos e depravação. Mary Bell foi submetida a diversos abusos e de uma crueldade quase inimaginável. Desde os cinco anos, ela foi forçada pela própria mãe a participar de atos sexuais com seus clientes. Este abuso sexual precoce e contínuo foi uma constante em sua vida, roubando-lhe a inocência e a segurança de uma forma brutal.
Em um dos relatos obtidos durante a investigação, foi revelado que Betty amarrava os cabelos de Mary para que a filha mantivesse a cabeça parada e a boca entreaberta para que os seus clientes pudessem ejacular na boca da menina de apenas cinco anos.
Além da exploração sexual, Mary era submetida a abusos físicos e psicológicos extremos. Betty a drogava com anfetaminas e a humilhava publicamente, como quando esfregava seu rosto na própria urina por ter molhado a cama. Este ambiente tóxico e desprovido de qualquer forma de amor ou proteção moldou a psique de Mary de maneira profunda e devastadora.
A violência que ela sofria em casa se manifestava em seu comportamento externo. Ela se tornou uma criança agressiva e perturbada, que encontrava na crueldade uma forma de expressar sua dor e raiva. Antes de voltar sua violência para outras crianças, Mary começou a torturar e matar animais, um comportamento frequentemente visto como um precursor de violência interpessoal em adultos.
Ela também praticava estrangulamento em seus colegas de escola, um prenúncio sombrio dos crimes que viria a cometer. A infância de Mary Bell não foi apenas infeliz; foi um campo de treinamento para a violência. Cada abuso, cada ato de negligência, cada momento de terror contribuiu para a erosão de sua humanidade e para a construção de uma personalidade psicopática.
A menina que deveria estar aprendendo a ler e a brincar estava aprendendo a sobreviver em um mundo de predadores, e, no processo, acabou se tornando uma assassina. A história de sua infância não serve como uma desculpa para seus crimes, mas como uma explicação de como o mal pode ser cultivado e alimentado pelo trauma e desespero.
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Os Assassinatos

Em 1968, na cidade de Scotswood, Mary Bell cometeu o seu primeiro assassinato brutal. Seus alvos foram duas crianças inocentes, cujas vidas foram brutalmente interrompidas. O primeiro a morrer foi Martin Brown, um menino de apenas três anos.
Em 25 de maio, um dia antes de Mary completar onze anos, ela e sua amiga Norma Bell (uma menina de treze anos com quem não tinha parentesco) encontraram Martin brincando.
Em uma casa abandonada, um local que deveria ser um refúgio para brincadeiras infantis, Mary cometeu seu primeiro assassinato. Ela estrangulou Martin. O ato foi frio e desprovido de qualquer emoção aparente.
Depois de matar o menino, elas o jogaram do segundo andar, numa tentativa de fazer a morte parecer um acidente. A polícia inicialmente tratou o caso como uma queda acidental, e a escuridão que se escondia por trás do rosto angelical de Mary Bell continuou a passar despercebida. Encorajada pela impunidade, a crueldade de Mary escalou.
Pouco mais de dois meses depois, em 31 de julho, ela cometeu seu segundo e ainda mais brutal assassinato. A vítima foi Brian Howe, de quatro anos. Mary e Norma levaram Brian para uma área de entulho perto de uma linha de trem, um terreno baldio onde as crianças locais costumavam brincar.
Foi neste local que a violência de Mary atingiu um novo patamar de sadismo. Ela estrangulou Brian, mas não parou por aí. Com uma tesoura, ela mutilou o corpo do menino. Perfurou suas coxas e genitais, e, em um ato de depravação que chocou até mesmo os investigadores mais experientes, ela usou a lâmina para cravar a letra “M” na barriga de sua vítima. Ela também cortou mechas do cabelo de Brian.
Norma, que testemunhou a cena, ficou horrorizada com a brutalidade de Mary e fugiu, mas o medo a manteve em silêncio. Mais tarde, foi revelado que Mary teria dito sobre Brian: “Ele não tem mãe, assim ninguém sentirá sua falta”, uma declaração que revelava uma total falta de empatia e uma desconexão assustadora da realidade.
Os assassinatos de Martin Brown e Brian Howe não foram atos impulsivos de uma criança com problemas. Foram ações deliberadas, calculadas e executadas com uma frieza que desmentia sua pouca idade. Eles revelaram uma mente profundamente perturbada, uma criança que não apenas era capaz de matar, mas que parecia encontrar prazer e excitação na dor e no sofrimento dos outros.
A Caçada e o Julgamento
As mutilações sádicas no corpo de Brian Howe deixou claro para a polícia que eles não estavam lidando com um acidente. Havia um assassino à solta em Scotswood, e a comunidade estava em pânico. A investigação que se seguiu lentamente começou a fechar o cerco em torno de Mary Bell e Norma Bell.
O comportamento das duas meninas após os crimes era, no mínimo, suspeito. Mary, em particular, parecia se deleitar com a atenção e o drama que cercavam as mortes. Ela compareceu ao funeral de Martin Brown e, de forma arrepiante, perguntava constantemente à família de Brian se eles sentiam falta do menino. Ela chegou a dar pistas sobre o paradeiro do corpo de Brian, sugerindo que o procurassem nos escombros.
Um dos momentos mais incriminadores ocorreu quando o caixão de Brian estava sendo retirado de sua casa. Um detetive observou Mary do outro lado da rua, rindo. Essa demonstração de total falta de remorso foi um sinal claro para os investigadores de que estavam no caminho certo.
Durante os interrogatórios, Mary e Norma inicialmente negaram qualquer envolvimento, mas suas histórias eram inconsistentes e cheias de contradições. Elas acabaram acusando uma à outra, e a teia de mentiras que haviam tecido começou a se desfazer.
Mary cometeu um erro crucial ao mencionar que havia visto Brian brincando com uma tesoura, um detalhe que apenas o assassino poderia saber. A pressão aumentou e, finalmente, Mary confessou. Sua confissão foi tão chocante quanto seus crimes. Ela admitiu ter matado os dois meninos, afirmando que o fez “por prazer e emoção”.
O julgamento de Mary Bell e Norma Bell começou em dezembro de 1968. O caso atraiu a atenção da mídia de todo o mundo, e o público ficou fascinado e horrorizado com a ideia de uma criança assassina. O tribunal teve que lidar com a difícil tarefa de julgar uma menina de onze anos por crimes de adultos. A defesa de Mary argumentou que ela era uma vítima de sua educação traumática e que sofria de responsabilidade diminuída.
Psiquiatras que a examinaram encontraram sintomas clássicos de psicopatia, descrevendo-a como uma criança perigosa que precisava ser contida. O juiz, ao proferir a sentença, ecoou essa preocupação, afirmando: “Esta garota é perigosa e seus passos precisam ser interrompidos para proteger outras pessoas”.
No final, o júri considerou Mary culpada de homicídio culposo, com responsabilidade atenuante, em ambos os casos. Norma Bell foi absolvida de todas as acusações. Mary foi condenada a uma pena de detenção por tempo indeterminado, a ser cumprida em um centro de segurança para jovens.
O julgamento de Mary Bell não apenas a condenou por seus crimes, mas também expôs as falhas de um sistema que não conseguiu protegê-la da violência que, em última análise, ela mesma veio a perpetuar.
Uma Mente Fragmentada
A infância é um período marcado por intensa neuroplasticidade, no qual o cérebro se encontra em constante desenvolvimento e adaptação. Quando uma criança vivencia abusos físicos, emocionais, sexuais ou situações de abandono, as consequências vão muito além das dores emocionais: elas remodelam a estrutura e o funcionamento cerebral de forma duradoura, deixando marcas profundas que podem acompanhar o indivíduo por toda a vida.
Um dos principais sistemas afetados é o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA), responsável pela resposta ao estresse. Crianças submetidas a traumas precoces tendem a apresentar hiperativação desse sistema, resultando em níveis cronicamente elevados de cortisol. Essa exposição prolongada a hormônios do estresse tem efeito tóxico sobre os neurônios, especialmente em áreas relacionadas à memória, ao controle das emoções e à regulação do comportamento. O resultado é uma maior vulnerabilidade a quadros de ansiedade, depressão, impulsividade e transtornos de estresse pós-traumático.
Estruturas cerebrais específicas também sofrem alterações significativas. A amígdala, núcleo ligado ao processamento do medo, tende a se tornar hipertrofiada, o que explica a hipervigilância e a tendência de interpretar estímulos neutros como ameaçadores.
Já o hipocampo, responsável pela memória e pela contextualização das experiências, frequentemente apresenta redução volumétrica, o que compromete a capacidade de organizar lembranças de forma coerente e aumenta o risco de desenvolvimento de TEPT.
O córtex pré-frontal, área relacionada ao planejamento, ao controle inibitório e à regulação emocional, também é impactado, mostrando menor conectividade com o sistema límbico. Essa alteração prejudica a tomada de decisões e favorece comportamentos impulsivos. Outro achado recorrente é a diminuição da espessura do corpo caloso, a principal ponte de comunicação entre os hemisférios cerebrais, o que dificulta a integração de informações cognitivas e emocionais.
As consequências não se restringem à anatomia cerebral, mas envolvem também a neuroquímica. Crianças vítimas de abuso apresentam desequilíbrios no sistema dopaminérgico, o que afeta o circuito de recompensa e aumenta o risco de desenvolver vícios, sejam eles relacionados a substâncias ou a comportamentos compulsivos. A serotonina, neurotransmissor essencial para a regulação do humor, também aparece em níveis reduzidos, favorecendo a impulsividade e a agressividade. Já a ocitocina, substância associada à criação de vínculos afetivos, tende a estar em baixa, o que dificulta a construção de relações de confiança e apego seguro.
No campo da epigenética, estudos recentes demonstram que os maus-tratos na infância podem modificar a expressão de genes ligados à resposta ao estresse, sem alterar o DNA em si. Um exemplo é a metilação do gene NR3C1, responsável pelo receptor de glicocorticoides, que aumenta a sensibilidade do organismo ao estresse ao longo da vida. Esses mecanismos explicam por que o trauma pode se perpetuar de geração em geração, já que filhos de vítimas de abuso carregam, biologicamente, maior vulnerabilidade emocional e comportamental.
O corpo também sente os impactos. A hiperativação constante do sistema de estresse provoca desgaste imunológico, eleva o risco de doenças inflamatórias, cardiovasculares e autoimunes, além de estar associada ao desenvolvimento precoce de condições crônicas. O famoso estudo ACE (Adverse Childhood Experiences) demonstrou de forma robusta que experiências adversas na infância estão diretamente relacionadas a menor expectativa de vida.
As repercussões emocionais e comportamentais são igualmente marcantes. Crianças que sofreram abusos tendem a apresentar dificuldades de apego, medo de intimidade e vínculos afetivos inseguros ou desorganizados. Muitas recorrem a comportamentos autodestrutivos, como automutilação, tentativas de suicídio e uso de substâncias. Outras podem perpetuar o ciclo da violência, seja como agressores, seja como vítimas recorrentes de novas situações abusivas. Além disso, o desempenho escolar costuma ser afetado, já que atenção, memória e aprendizado ficam prejudicados por alterações estruturais e químicas no cérebro.
Do ponto de vista psicanalítico, Freud interpretaria essas crianças como fixadas em fases do desenvolvimento onde o prazer está associado ao controle e à destruição, como na fase sádico-anal. Já a psicologia junguiana enxerga nelas a manifestação precoce da “sombra”, ou seja, aspectos reprimidos e não integrados da psique que emergem de forma desestruturada.
Apesar de todos os danos documentados, a neurociência também oferece uma visão de esperança. O cérebro infantil, justamente por sua plasticidade, é capaz de se reorganizar quando encontra um ambiente seguro e terapêutico. Intervenções precoces, como psicoterapia baseada em trauma — incluindo a terapia cognitivo-comportamental focada em trauma e o EMDR —, práticas de regulação do estresse, como mindfulness, além da oferta de vínculos afetivos seguros, podem atenuar os efeitos deletérios e promover resiliência. Em casos graves, a associação com tratamento psiquiátrico pode ajudar no controle da impulsividade e no equilíbrio emocional.
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O abuso e o abandono não deixam apenas cicatrizes emocionais. Eles remodelam o cérebro em nível estrutural, químico e epigenético, ampliando os riscos de transtornos mentais, doenças físicas e dificuldades sociais ao longo da vida.
Quando essas experiências são de abuso e trauma extremos, como no caso de Mary Bell, o cérebro não apenas registra a dor, ele é fisicamente e quimicamente alterado.
A história de Mary Bell é uma acusação contundente não apenas de seus pais abusivos, mas de uma sociedade que falhou em protegê-la. Seus crimes são um lembrete trágico de que a violência não surge do nada; ela é cultivada através do trauma e da negligência.
Compreender a base neurológica da violência de Mary Bell traz implicações para o sistema de justiça juvenil e para a prevenção do abuso infantil.
Em vez de simplesmente punir crianças que cometem crimes violentos, precisamos reconhecer que elas são, muitas vezes, vítimas de danos cerebrais significativos.
Isso exige uma abordagem que combine responsabilidade com tratamento e reabilitação, focada em curar o cérebro traumatizado.
Mais importante ainda, a história de Mary Bell é um alerta para a prevenção do abuso infantil. Cada criança que protegemos do trauma é um cérebro que salvamos de ser danificado.
Os atos de violência de Mary Bell não foram simplesmente o resultado de uma “alma ruim” ou de uma “maldade inerente”, mas sim as consequências previsíveis e trágicas de um cérebro que foi sistematicamente danificado por anos de abuso.
O Catálogo de Horrores: Os Abusos Sofridos por Mary Bell
Para entender o impacto neurológico do trauma de Mary Bell, é crucial detalhar a natureza e a extensão dos abusos que ela sofreu. Não se tratou de um único evento traumático, mas de um ambiente de terror crônico e multifacetado:
- Abuso Sexual Precoce e Contínuo: Desde os cinco anos, Mary foi forçada por sua mãe, uma prostituta, a fazer sexo oral em seus clientes. Este abuso sexual contínuo e precoce é uma das formas mais devastadoras de trauma infantil, com profundas implicações para o desenvolvimento cerebral.
- Abuso Físico e Negligência: Mary era frequentemente espancada e negligenciada por sua mãe. Ela era drogada, usava anfetaminas e humilhada publicamente.
A negligência, a falta de cuidados básicos e a exposição constante à violência criaram um ambiente de estresse tóxico, inundando seu cérebro em desenvolvimento com hormônios do estresse. A família sabia de tudo e nada fizeram para ajudá-la.
- Abuso Emocional e Psicológico: Talvez o abuso mais insidioso tenha sido o emocional. A mãe de Mary tentou matá-la várias vezes, vendê-la e constantemente a rejeitava.
Essa falta de vínculo afetivo e a constante ameaça à sua vida criaram um estado de hipervigilância e medo crônico, com consequências diretas para o desenvolvimento de estruturas cerebrais responsáveis pela regulação emocional.
- Exposição à Violência: Mary cresceu em um ambiente onde a violência era normalizada. Seu pai era um criminoso violento, e ela testemunhava constantemente a violência associada à prostituição de sua mãe. Essa exposição crônica à violência dessensibilizou-a ao sofrimento dos outros e modelou seu próprio comportamento.
As Consequências Neurológicas dos Abusos
As experiências de Mary Bell não deixaram apenas cicatrizes emocionais; elas deixaram cicatrizes físicas em seu cérebro. A neurociência moderna nos permite entender como os abusos que ela sofreu se traduziram em danos neurológicos específicos:
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- Danos ao Hipocampo: Essencial para a memória, o aprendizado e a regulação do estresse. O excesso de cortisol pode danificar e até diminuir o tamanho do hipocampo
Como resultado, crianças que sofreram trauma podem ter dificuldades de memória (tanto para eventos traumáticos quanto para fatos cotidianos), problemas de aprendizado e incapacidade de controlar suas respostas ao estresse.
Em Mary Bell, isso pode ter se manifestado como uma incapacidade de processar adequadamente suas memórias traumáticas, deixando-as “presas” em um estado ativo, e uma dificuldade em regular suas emoções, levando a comportamentos impulsivos e agressivos.
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- Hiperativação da Amígdala: Esta é a “central de alarme” do cérebro, responsável por processar o medo e as emoções. Em crianças que sofreram abuso, a amígdala tende a se tornar hiperativa. Isso as torna excessivamente reativas a ameaças percebidas, levando a estados constantes de ansiedade, pânico e respostas emocionais desproporcionais.
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No caso de Mary, isso pode ter criado um estado de medo e ansiedade crônicos, levando-a a interpretar mal as situações sociais e a reagir com agressão a ameaças percebidas, mesmo quando não eram reais.
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- Disfunção do Córtex Pré-Frontal: Localizado na parte frontal do cérebro, o CPF é responsável pelas funções executivas, como tomada de decisões, planejamento, controle de impulsos e regulação emocional. O desenvolvimento desta área é prejudicado pelo trauma, levando a dificuldades em regular emoções, baixa tolerância à frustração e comportamentos impulsivos.
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O trauma na infância pode prejudicar o desenvolvimento do córtex pré-frontal, levando a dificuldades no controle do comportamento. Em Mary Bell, isso pode ter se manifestado como uma incapacidade de controlar seus impulsos violentos e de prever as consequências de seus atos.
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- Desregulação do Eixo HPA: O eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA) é o sistema de resposta ao estresse do corpo. O trauma crônico pode desregular esse sistema, levando a níveis cronicamente elevados de hormônios do estresse, como o cortisol.
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Essa desregulação pode ter contribuído para a ansiedade, a depressão e a agressividade de Mary Bell.
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- Alterações nos Neurotransmissores: O trauma também pode afetar os sistemas de neurotransmissores do cérebro, como os sistemas de dopamina e serotonina, que estão envolvidos na regulação do humor, da recompensa e da agressão.
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Essas alterações podem ter contribuído para a anedonia (incapacidade de sentir prazer) e a busca por sensações fortes que caracterizaram o comportamento de Mary Bell.
Da Dor à Violência: Como um Cérebro Danificado Gera um Monstro
A conexão entre os danos cerebrais sofridos por Mary Bell e seus atos de violência não é uma mera especulação; é uma conclusão lógica baseada em décadas de pesquisa neurocientífica.
A violência de Mary pode ser vista como um sintoma de um cérebro que foi forçado a se adaptar a um ambiente de terror constante.
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- Agressão como Resposta de Sobrevivência: A hiperativação da amígdala e a disfunção do córtex pré-frontal criaram uma “tempestade perfeita” para a agressão.
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Com seu sistema de alarme constantemente disparado e sua capacidade de controle de impulsos severamente comprometida, a violência se tornou uma resposta primária e desregulada a qualquer estresse ou ameaça percebida.
Seus ataques a outras crianças podem ser interpretados como uma manifestação externa de um sistema de defesa interno que estava cronicamente sobrecarregado.
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- Falta de Empatia e Desconexão Emocional: A redução do volume do hipocampo e as alterações no córtex pré-frontal também estão associadas a uma diminuição da empatia.
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A incapacidade de processar suas próprias emoções e de se conectar com a dor dos outros é uma característica marcante da psicopatia. Os abusos que Mary sofreu essencialmente “desligaram” os circuitos cerebrais responsáveis pela empatia, permitindo que ela infligisse dor sem sentir remorso.
Sua declaração de que matava “por prazer e emoção” pode ser entendida não como uma expressão de alegria sádica, mas como a busca desesperada por qualquer tipo de estímulo em um cérebro que foi dessensibilizado pela dor crônica.
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- Repetição do Trauma: É um padrão trágico e bem documentado que as vítimas de abuso muitas vezes se tornam abusadoras. Isso pode ser explicado, em parte, pela forma como o cérebro aprende e se molda.
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Ao ser exposta à violência repetidamente, o cérebro de Mary aprendeu que a violência era uma forma de interação e poder. Seus atos de estrangulamento e mutilação podem ser vistos como uma repetição e uma encenação dos traumas que ela mesma sofreu, uma tentativa distorcida de ganhar controle sobre uma situação em que ela sempre foi impotente.
A Busca Pelo Anonimato
Mary Bell foi libertada da prisão em 1980, aos 23 anos, após cumprir doze anos de sua sentença. Sua
libertação marcou o início de um novo capítulo em sua vida, um capítulo que seria definido por uma busca constante pelo anonimato e por uma tentativa de escapar da sombra de seus crimes.
Ao ser solta, Mary recebeu uma nova identidade e o direito de recomeçar sua vida longe dos olhos do público.

Ela se casou e, em 1984, deu à luz uma filha. Por mais de uma década, ela conseguiu viver uma vida relativamente normal, com sua filha crescendo sem saber do passado sombrio de sua mãe. No entanto, o passado de Mary nunca esteve muito longe.
Em 1998, a paz que ela havia construído foi abalada quando jornalistas descobriram sua identidade e seu paradeiro. A mídia cercou sua casa, e Mary e sua filha, então com 14 anos, foram forçadas a fugir, cobrindo os rostos com lençóis para evitar serem fotografadas. O incidente trouxe o caso de Mary Bell de volta aos holofotes e forçou-a a confrontar seu passado de uma forma muito pública. Foi nesse mesmo ano que Mary decidiu contar sua história.
Ela colaborou com a jornalista Gitta Sereny no livro “Cries Unheard: Why Children Kill – The Story of Mary Bell” (lançado no Brasil como “Por que Crianças Matam: A História Real de Mary Bell”). No livro, Mary falou abertamente sobre sua infância traumática e os crimes que cometeu. A publicação do livro foi extremamente controversa, principalmente porque Mary recebeu um pagamento por sua participação. Muitos criticaram o fato de uma assassina condenada estar lucrando com seus crimes.
No entanto, o livro também ofereceu um vislumbre sem precedentes da mente de uma criança assassina e levantou questões importantes sobre o impacto do abuso infantil. A perseguição da mídia continuou a assombrar Mary e sua filha.
Em 2003, elas obtiveram uma ordem judicial do Tribunal Supremo que lhes concedeu anonimato vitalício. A ordem, que ficou conhecida como a “Ordem Mary Bell”, protege não apenas a identidade de Mary, mas também a de sua filha e de seus futuros descendentes. A ordem estabeleceu um precedente legal importante na Grã-Bretanha, criando um mecanismo para proteger a identidade de ex-condenados que buscam se reintegrar à sociedade.
Em 2009, a notícia de que Mary havia se tornado avó mais uma vez trouxe seu nome de volta aos jornais. A mãe de Martin Brown, June Richardson, expressou sua dor e raiva ao saber da notícia, dizendo: “Ela tirou minha bênção e me deixou em luto para o resto da minha vida. Eu espero que quando ela olhe para essa criança ela se lembre das outras duas que ela assassinou”.
Hoje, Mary Bell tem 67 anos e continua a viver sob a proteção da “Ordem Mary Bell”. Seu paradeiro é desconhecido. Sua vida após a prisão é um testemunho da complexidade da reabilitação e do debate sem fim sobre se uma pessoa que cometeu crimes tão terríveis pode realmente pagar sua dívida com a sociedade e merecer uma segunda chance.
A história de Mary Bell não termina com sua libertação; ela continua a ecoar nas vidas daqueles que ela feriu e na sociedade que ainda luta para entender como o mal pode florescer em um coração tão jovem.
O Legado de Mary Bell

A história de Mary Bell é uma das mais perturbadoras e complexas da história criminal moderna. É uma história que nos força a confrontar verdades desconfortáveis sobre a natureza do mal, a fragilidade da infância e a capacidade humana para a crueldade.
Na criminologia e na psicologia, seu caso se tornou um estudo de caso seminal sobre o desenvolvimento da psicopatia infantil e o impacto do trauma na formação da personalidade. A análise de sua vida e de seus crimes ajudou a moldar a compreensão moderna de como o abuso e a negligência na infância podem levar a comportamentos violentos extremos.
No campo jurídico, o caso de Mary Bell trouxe mundanças no sistema de justiça juvenil da Grã-Bretanha. O julgamento de uma menina de onze anos por assassinato levantou questões difíceis sobre como o sistema legal deve tratar crianças que cometem crimes de adultos.
A “Ordem Mary Bell”, que concedeu a ela e a seus descendentes anonimato vitalício, estabeleceu um precedente importante para a proteção da identidade de ex-condenados e para o debate sobre o equilíbrio entre o direito à reabilitação e o direito do público à informação. Para a sociedade em geral, a história de Mary Bell serve como um lembrete sombrio de que a inocência infantil não é uma garantia.
Ela nos força a olhar para as crianças não como seres inerentemente bons, mas como indivíduos complexos que são moldados por suas experiências. O caso de Mary Bell nos obriga a reconhecer a importância de proteger as crianças do abuso e da negligência, não apenas por uma questão de compaixão, mas também como uma forma de prevenir a violência futura.
A história de Mary Bell é uma tragédia em vários níveis. É a tragédia de duas crianças pequenas cujas vidas foram roubadas. É a tragédia de uma menina cuja infância foi tão cheia de horror que ela se tornou um monstro. E é a tragédia de uma sociedade que falhou em protegê-la e que, como resultado, teve que arcar com as consequências de sua violência.
Mais de cinco décadas depois, o nome de Mary Bell ainda evoca um sentimento de horror e fascínio. Sua história continua a ser contada e recontada, em livros, documentários e artigos.


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