Crianças

6- Roda dos Expostos: O Impacto do Abandono Infantil

A Roda dos Expostos foi um sistema utilizado entre os séculos XVIII e XIX para lidar com o abandono infantil, marcando um capítulo sombrio na história da infância.

A Roda dos Expostos foi um sistema utilizado entre os séculos XVIII e XIX para lidar com o abandono infantil, marcando um capítulo sombrio na história da infância. Consistindo em uma estrutura giratória instalada em conventos e instituições de caridade, a Roda dos Expostos permitia que mães, muitas vezes em situações de extrema vulnerabilidade, deixassem seus bebês de forma anônima. Embora tivesse como objetivo salvar vidas e combater o infanticídio, essa prática perpetuava o abandono e trazia consigo profundas consequências psicológicas e neurológicas para as crianças envolvidas.

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Entender os efeitos da Roda dos Expostos e do abandono infantil, especialmente em um sistema como a Roda dos Expostos, requer uma análise que vá além do contexto histórico. Por meio da neurociência, psicanálise, psiquiatria e psicologia, é possível compreender como a privação do vínculo materno afeta o desenvolvimento cerebral, a saúde mental e a formação da identidade. Este artigo explora as implicações de uma prática que, apesar de extinta, ainda ressoa nas discussões sobre abandono e proteção infantil nos dias de hoje.


O Que Era a Roda dos Expostos?

A Roda dos Expostos surgiu em um contexto de extrema pobreza e desigualdade, onde mulheres solteiras e sem recursos enfrentavam estigma social e a impossibilidade de criar seus filhos. A prática foi amplamente adotada em países como Portugal, França, Itália e Brasil, sob o pretexto de oferecer uma alternativa “segura” ao infanticídio e ao abandono público de bebês. No entanto, a realidade dentro das instituições que recebiam essas crianças era marcada por altas taxas de mortalidade, negligência e condições insalubres.

A Roda dos Expostos era uma estrutura simples, geralmente feita de madeira, que funcionava como um tambor giratório. Ela era instalada em locais estratégicos para que mães — muitas vezes solteiras, pobres ou vítimas de abandono social — pudessem deixar seus bebês sem serem identificadas. Uma vez colocado o bebê na roda, ela girava, entregando a criança para o interior da instituição, onde seria cuidada por freiras ou funcionários.

Embora a intenção da Roda dos Expostos fosse salvar vidas, o sistema reforçava a marginalização das crianças abandonadas. Muitas delas não sobreviviam, e as que viviam enfrentavam preconceito por sua condição de “expostas”, crescendo em orfanatos ou sob a tutela de famílias que frequentemente as viam como mão de obra barata. Essa realidade, somada à ruptura inicial do vínculo materno, deixou marcas profundas no desenvolvimento emocional e psicológico dessas crianças.

Origem e Propósito

  • Primeiras Instalações: A prática teve origem na Europa medieval e foi amplamente difundida em países como Portugal, Espanha, Itália e França. No Brasil, a Roda dos Expostos foi introduzida em meados do século XVIII.
  • Objetivo: Reduzir o infanticídio, que era comum em um período marcado pela pobreza extrema e pela falta de apoio social às mães solteiras.

O Nome

O termo “exposto” refere-se ao ato de expor a criança, simbolizando o abandono e, ao mesmo tempo, a entrega ao cuidado de outra instituição.


A Realidade por Trás da Roda

Embora fosse uma tentativa de salvar vidas, a Roda dos Expostos frequentemente perpetuava uma vida de sofrimento e negligência para as crianças.

1. Alta Mortalidade Infantil

A maioria das crianças deixadas na Roda dos Expostos não sobrevivia. Fatores como desnutrição, doenças e condições insalubres eram comuns nos orfanatos e asilos da época.

2. Estigma Social

As crianças que sobreviviam muitas vezes carregavam o estigma de serem “expostas”, enfrentando preconceito e exclusão ao longo de suas vidas.

3. Conexão Rompida

A separação abrupta da mãe gerava uma ruptura emocional que tinha efeitos duradouros no desenvolvimento psicológico da criança.


Impactos Psicológicos e Psicanalíticos

A psicanálise oferece uma perspectiva rica para entender as consequências do abandono infantil, especialmente quando ocorre nos primeiros dias ou meses de vida. Para Freud, as experiências iniciais de um indivíduo moldam sua psique e suas relações futuras. O abandono materno, como o que ocorria na Roda dos Expostos, representa uma quebra no vínculo primário, essencial para a segurança emocional do bebê.

A ausência da figura materna pode gerar um sentimento inconsciente de insegurança e rejeição, muitas vezes reprimido, mas que se manifesta em comportamentos e padrões emocionais ao longo da vida. O conceito freudiano de “trauma” é particularmente relevante aqui. O bebê, incapaz de processar ou compreender a separação, internaliza o abandono como uma experiência traumática, afetando sua capacidade de confiar nos outros e em si mesmo.

Jacques Lacan, outro grande nome da psicanálise, aprofundou essa discussão ao introduzir a ideia de que o “eu” se forma por meio do reconhecimento do “outro”. Para crianças abandonadas, a ausência de um cuidador consistente pode dificultar a construção de uma identidade coesa, resultando em sentimentos de vazio e dificuldade de se conectar emocionalmente com outras pessoas.

1. O Trauma do Abandono

Freud argumentava que as primeiras experiências de vida moldam a psique de maneira profunda. O abandono materno, especialmente em um momento tão crucial como o início da vida, pode deixar marcas duradouras no inconsciente.

  • Ansiedade de Separação: O rompimento do vínculo com a figura materna pode gerar sentimentos de insegurança e abandono que perduram até a idade adulta.
  • Trauma Reprimido: Crianças que enfrentaram abandono precoce podem desenvolver mecanismos de repressão para lidar com o trauma, mas esses mecanismos frequentemente resultam em dificuldades emocionais futuras, como ansiedade e depressão.

2. A Teoria do Apego

A teoria do apego, desenvolvida por John Bowlby, complementa a compreensão dos efeitos do abandono infantil ao destacar a importância do vínculo entre o bebê e o cuidador primário. Segundo Bowlby, esse vínculo é essencial para a segurança emocional e o desenvolvimento saudável da criança. A ausência desse apego, como ocorria na Roda dos Expostos, pode levar ao desenvolvimento de padrões de apego inseguros, que se manifestam de diferentes formas.

O apego evitativo, por exemplo, ocorre quando a criança aprende a suprimir suas necessidades emocionais para evitar a rejeição, enquanto o apego ansioso-reflexivo é caracterizado por medo de abandono e comportamento dependente. Esses padrões, formados na infância, muitas vezes persistem na vida adulta, impactando relacionamentos e a capacidade de confiar nos outros.

A falta de um vínculo seguro também prejudica a capacidade da criança de desenvolver a autorregulação emocional. Sem um cuidador presente para atender às suas necessidades, o bebê é forçado a lidar sozinho com o estresse e o desconforto, o que pode levar a dificuldades emocionais e comportamentais ao longo da vida.

John Bowlby, fundador da teoria do apego, destacou que o vínculo entre o cuidador e o bebê é essencial para o desenvolvimento saudável. A ausência desse vínculo, como ocorria nos casos da Roda dos Expostos, pode levar a:

  • Apego Inseguro: Crianças abandonadas tendem a desenvolver relacionamentos marcados por medo de rejeição ou dificuldade de confiar nos outros.
  • Dificuldades Emocionais: A falta de estabilidade na infância afeta a capacidade de regular emoções e formar laços saudáveis.

3. A Construção do “Eu”

Jacques Lacan, no campo da psicanálise, argumentava que o reconhecimento do “outro” é essencial para a formação do “eu”. Para crianças abandonadas, a ausência de um cuidador primário pode dificultar essa construção, levando a sentimentos de vazio ou identidade fragmentada.

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A Neurociência do Abandono

Do ponto de vista neurológico, o abandono infantil tem impactos profundos no desenvolvimento do cérebro. Os primeiros anos de vida são cruciais para a formação das conexões neurais e o desenvolvimento de áreas cerebrais responsáveis pela regulação emocional, cognição e comportamento social. A ausência de um cuidador primário afeta diretamente esse processo, gerando alterações significativas.

O estresse causado pelo abandono ativa o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA), responsável pela liberação de cortisol, o hormônio do estresse. Em níveis elevados e persistentes, o cortisol pode prejudicar o hipocampo, uma região cerebral essencial para a memória e o aprendizado, além de enfraquecer o córtex pré-frontal, que regula o controle dos impulsos e a tomada de decisões. Essas alterações tornam a criança mais vulnerável a transtornos de ansiedade, depressão e problemas de comportamento.

Outro impacto significativo ocorre no sistema límbico, particularmente na amígdala, que regula as respostas emocionais. Crianças que enfrentam abandono precoce frequentemente apresentam uma amígdala hiperativa, resultando em maior reatividade emocional e dificuldade de regulação emocional. Essa hipersensibilidade pode levar a comportamentos impulsivos e dificuldade de lidar com situações de estresse.

Além disso, a ausência de estímulos positivos, como o contato físico e a interação afetiva, reduz a plasticidade cerebral, limitando o potencial de aprendizado e adaptação da criança. Estudos mostram que crianças abandonadas apresentam conectividade reduzida entre regiões cerebrais, prejudicando suas habilidades sociais e emocionais.

1. Impacto no Desenvolvimento Cerebral

As consequências da Roda dos Expostos e do abandono infantil não se limitam à infância. Muitas das crianças deixadas na Roda dos Expostos cresceram enfrentando desafios significativos na saúde mental, incluindo transtornos de ansiedade, depressão e transtornos de personalidade. A ausência de um vínculo seguro também está associada a baixa autoestima, dificuldade de estabelecer relacionamentos saudáveis e comportamentos autodestrutivos.

Na psiquiatria, essas manifestações são frequentemente diagnosticadas como transtornos relacionados a traumas e estressores. A abordagem terapêutica para esses casos envolve a reconstrução do senso de segurança e pertencimento, ajudando o indivíduo a processar e ressignificar a experiência de abandono.

Os primeiros anos de vida são cruciais para o desenvolvimento do cérebro. A ausência de cuidados consistentes pode levar a alterações neurológicas significativas:

  • Stress Tóxico: O abandono gera altos níveis de cortisol, o hormônio do estresse. O excesso de cortisol pode danificar o hipocampo, responsável pela memória e aprendizagem, e prejudicar o córtex pré-frontal, que regula o comportamento e as emoções.
  • Plasticidade Reduzida: A falta de estimulação emocional e física pode limitar a plasticidade cerebral, dificultando o aprendizado e o desenvolvimento cognitivo.

2. Alterações no Sistema Límbico

O sistema límbico, que regula emoções e comportamentos sociais, é particularmente vulnerável ao abandono precoce. Crianças que passam por essa experiência podem apresentar:

  • Hipersensibilidade ao Estresse: Uma amígdala hiperativa, resultando em maior reatividade emocional.
  • Déficits de Empatia: Dificuldades em compreender e responder às emoções dos outros.

3. Ciclo de Adversidade

Essas alterações neurológicas aumentam o risco de problemas de saúde mental na vida adulta, como:

  • Transtornos de ansiedade.
  • Depressão.
  • Transtornos de personalidade.

Psicologia Social e o Estigma do Abandono

A Roda dos Expostos não só moldava a psique das crianças, mas também influenciava a percepção social do abandono.

1. Marginalização

As crianças “expostas” frequentemente cresciam em orfanatos ou eram entregues a famílias adotivas que as viam como mão de obra barata. Isso perpetuava o ciclo de marginalização.

2. Identidade e Pertencimento

A falta de informações sobre suas origens deixava muitas crianças sem um senso claro de identidade, um fator que contribuía para sentimentos de alienação.


Lições para o Presente

Embora a Roda dos Expostos tenha sido desativada em muitos países, questões relacionadas ao abandono infantil permanecem relevantes.

1. Políticas de Proteção à Criança

O caso da Roda dos Expostos ressalta a importância de sistemas de proteção que priorizem o bem-estar físico e emocional das crianças, incluindo:

  • Adoção humanizada.
  • Apoio psicológico para crianças em situação de vulnerabilidade.
  • Políticas que ofereçam suporte financeiro e emocional a mães em risco de abandonar seus filhos.

2. Valorização do Vínculo

A ciência moderna reforça a importância de preservar o vínculo entre a mãe e o bebê sempre que possível, reconhecendo o impacto profundo dessa relação no desenvolvimento humano.


Conclusão: Uma História de Dores e Lições

Embora a Roda dos Expostos tenha sido extinta em muitos países, as questões relacionadas ao abandono infantil permanecem atuais. Sistemas de adoção e acolhimento continuam a enfrentar desafios para garantir o bem-estar físico e emocional das crianças, e a história da Roda serve como um lembrete da importância de políticas públicas que priorizem a proteção e o desenvolvimento saudável dos menores.

A Roda dos Expostos é um símbolo de uma época em que a pobreza e a falta de suporte social criaram soluções que, embora práticas, não consideravam os impactos emocionais e psicológicos a longo prazo. Sob as lentes da psicanálise, psiquiatria, psicologia e neurociência, podemos compreender como essas experiências moldaram gerações de crianças.

Hoje, refletir sobre a Roda dos Expostos nos permite reavaliar as práticas de cuidado infantil, buscando soluções que promovam segurança emocional, identidade e bem-estar para todas as crianças, independentemente de suas circunstâncias de nascimento.

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