5- Adolescência: A Minissérie da Netflix
Série da Netflix escancara o colapso emocional da juventude contemporânea, convidando à reflexão a partir da neurociência, psicologia, psicanálise, psiquiatria, educação e justiça

A minissérie “Adolescência” (“Adolescence”), lançada em 2025 pela Netflix, é uma das obras audiovisuais mais impactantes da década no campo da dramaturgia psicológica. Com uma proposta estética arrojada, filmada em plano-sequência e com uma narrativa crua e intimista, a série mergulha no universo de Jamie Miller, um adolescente de 13 anos acusado do assassinato de uma colega.
O que poderia facilmente ser rotulado como um crime brutal protagonizado por um “menor infrator” é, na verdade, o ponto de partida para uma reflexão profunda sobre os efeitos do ambiente, das relações familiares e das dinâmicas sociais e digitais sobre o desenvolvimento emocional e moral de um adolescente. Ao analisar essa obra sob a perspectiva integrada da neurociência, psicologia, psicanálise (sobretudo a visão de Winnicott), psiquiatria, além de visões educacionais, jurídicas e socioculturais, podemos extrair um retrato complexo e necessário da adolescência contemporânea.
Adolescência e a Neurociência: O Cérebro em Formação e em Crise
Do ponto de vista da neurociência, a adolescência é uma fase de intensa reestruturação cerebral. Jamie está exatamente nesse momento crítico de transição. O córtex pré-frontal, responsável pelo julgamento moral, pela empatia, pelo controle inibitório e pela tomada de decisões, ainda está em processo de maturação. Por outro lado, estruturas como o sistema límbico e a amígdala cerebral, ligadas à emoção e à impulsividade, já operam com força total. Isso cria um desequilíbrio neurológico que torna o adolescente mais vulnerável a respostas emocionais exageradas, comportamento impulsivo e dificuldade em avaliar consequências de suas ações. Jamie, ao longo da série, manifesta esses traços com intensidade: age por impulso, não consegue articular seus sentimentos de forma construtiva e demonstra reatividade emocional exacerbada.
Outro aspecto importante da neurociência é a questão da empatia. A empatia é mediada por redes neurais complexas, incluindo o sistema de neurônios-espelho, o córtex cingulado anterior e a junção temporoparietal. Jamie parece ter dificuldade em acessar essas funções empáticas, o que pode ser interpretado como um sinal de desenvolvimento afetivo prejudicado. A falta de reconhecimento emocional do outro, somada à exposição a ambientes hostis e a grupos misóginos online, cria um circuito disfuncional em que a violência se torna uma forma de expressão do sofrimento interno.
O estresse tóxico é outro conceito da neurociência fundamental para compreender Jamie. Crianças e adolescentes submetidos a ambientes de violência, negligência ou hostilidade constante desenvolvem uma ativação crônica do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, liberando altos níveis de cortisol. Isso afeta negativamente áreas como o hipocampo (memória) e o próprio córtex pré-frontal, prejudicando o aprendizado emocional e o controle dos impulsos. Jamie vive sob constante pressão: é alvo de bullying, sofre com a ausência de vínculos afetivos consistentes e está exposto a narrativas de ódio. Seu cérebro, em vez de desenvolver circuitos de resiliência, é moldado por experiências traumáticas e desorganizadoras.
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Psicologia e Adolescência: O Eu Fragmentado e a Busca por Identidade
Na perspectiva da psicologia do desenvolvimento, a adolescência é o estágio em que o indivíduo busca a construção de sua identidade. Erik Erikson define esse período como o momento da crise entre identidade versus confusão de papéis. Jamie está mergulhado nessa crise. Sua autoestima é abalada constantemente. Ele não encontra aceitação no ambiente escolar, sente-se rejeitado em casa e procura, desesperadamente, algum grupo ao qual possa pertencer. Ao não encontrar reconhecimento em ambientes saudáveis, acaba sendo cooptado por discursos de ódio que oferecem uma identidade distorcida, porém acolhedora.
O resultado é a construção de um eu fragmentado, inseguro, que internaliza a rejeição como um dado ontológico: “eu sou indesejado”. Nesse quadro, a agressividade deixa de ser apenas um sintoma comportamental e passa a ser uma linguagem de dor, um grito por existência. A psicologia compreende que sem vínculos de apego seguros, o adolescente não consegue organizar seu mundo interno de forma saudável. Jamie é um exemplo trágico disso.
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Psicanálise Winnicottiana: Falso Self e Falha Ambiental na Adolescência
A psicanálise, especialmente a contribuição de Donald Winnicott, oferece uma lente ainda mais profunda para entender Jamie. Para Winnicott, o desenvolvimento saudável do self depende de um ambiente suficientemente bom, que ofereça holding (sustentação emocional), manejo adequado das angústias e espelhamento afetivo. Jamie, no entanto, parece não ter recebido essas funções básicas. A função materna ou parental de traduzir e acolher as angústias do filho falha de forma sistemática. O ambiente, em vez de ser um espaço de apoio, se transforma num lugar de ameaça ou de negligência emocional.
A ausência de holding adequado leva ao desenvolvimento de um falso self. Jamie não tem espaço para existir de forma autêntica, e passa a operar a partir de uma máscara emocional defensiva. Essa máscara pode se manifestar como apatia, agressividade ou retraimento extremo. A verdadeira subjetividade fica reprimida, sem possibilidade de expressão. Com o tempo, esse falso self se cristaliza e, quando entra em colapso, o que emerge é o desespero psíquico, frequentemente traduzido em atos impulsivos ou destrutivos.
Winnicott também fala da importância das experiências de ilusão e desilusão no desenvolvimento emocional. O bebê precisa inicialmente viver na ilusão de que o mundo responde ao seu desejo, para depois, gradualmente, ser introduzido à realidade e às frustrações de forma tolerável. Jamie, porém, parece ter vivenciado desilusões abruptas, não mediadas, que o jogaram num estado de desesperança. A violência que comete pode ser compreendida como um ato de desespero diante de um mundo percebido como indiferente, hostil e insuportável.
Psiquiatria: Diagnóstico, Vulnerabilidades e Intervenção
Do ponto de vista psiquiátrico, o comportamento de Jamie levanta hipóteses clínicas importantes. Transtorno de Conduta, Transtorno de Apego Reativo ou mesmo um episódio depressivo mascarado são possibilidades que merecem consideração. No entanto, qualquer diagnóstico psiquiátrico deve ser feito com cautela e, sobretudo, contextualizado. Jamie não é simplesmente um portador de um transtorno. Ele é o produto de uma série de fatores de risco acumulados: predisposição genética possivelmente presente, ambiente desorganizado, falhas parentais graves, exclusão social e exposição a conteúdos digitais tóxicos.
A psiquiatria moderna entende que o desenvolvimento de transtornos em adolescentes deve ser visto sob o modelo bio-psico-social. Jamie exemplifica esse modelo de forma trágica: sua biologia vulnerável é ativada por estressores psicológicos e sociais intensos, sem qualquer rede de proteção efetiva. O que resulta disso é um colapso emocional que se manifesta como violência, não por maldade, mas por desorganização psíquica.
Educação e Escola: A Falta de Mediação Simbólica
Sob a ótica educacional, a série também evidencia a ausência da escola como mediadora simbólica. A escola, que poderia ser um espaço de reconhecimento, acolhimento e socialização, falha em identificar os sinais de sofrimento de Jamie. Professores, colegas e a instituição como um todo não conseguem atuar como agentes protetores. Isso revela um problema estrutural no modo como lidamos com a subjetividade adolescente no espaço escolar. O bullying é negligenciado, o isolamento não é abordado e os sinais de alerta são ignorados. A escola deixa de ser um território de simbolização e torna-se mais um espaço de exclusão.
Justiça e Responsabilidade: A Questão Ético-Jurídica
Do ponto de vista jurídico, a série provoca reflexões importantes sobre a responsabilização penal de adolescentes. Jamie comete um crime grave, mas seria ele plenamente responsável? O Estatuto da Criança e do Adolescente (no Brasil) e legislações semelhantes ao redor do mundo reconhecem que a adolescência é uma fase de desenvolvimento incompleto. Isso implica que a responsabilização deve ser pedagógica, não meramente punitiva. A série questiona os limites da justiça retributiva quando aplicada a indivíduos cuja capacidade de discernimento está comprometida por múltiplas falhas ambientais e estruturais.
Cultura Digital: A Influência dos Espaços Virtuais
Outro ponto central é o papel da cultura digital na construção identitária de Jamie. A internet, que poderia ampliar horizontes, torna-se um espaço de reforço de discursos de ódio, misoginia e ressentimento. Fóruns online funcionam como “comunidades substitutas” que validam a dor e a raiva, mas a canalizam para a destruição. Um exemplo disso são os chamados “incels” — abreviação de “involuntary celibates” (celibatários involuntários).
Trata-se de homens, geralmente jovens, que se identificam como incapazes de estabelecer relações afetivas ou sexuais, apesar do desejo por elas. Esses indivíduos, ao se agruparem em comunidades virtuais, muitas vezes promovem um discurso de ódio contra mulheres e homens bem-sucedidos nas relações interpessoais, reforçando uma visão distorcida de mundo baseada na vitimização, no ressentimento e na agressividade.
Na série, Jamie entra em contato com esse tipo de conteúdo digital, o que aprofunda seu isolamento emocional e reforça crenças disfuncionais sobre si mesmo e sobre o mundo ao seu redor. A exposição precoce e desregulada a essas plataformas amplia o sentimento de exclusão e favorece a construção de uma identidade baseada na raiva, na negação do outro e na idealização da violência como forma de reparação simbólica.
Do ponto de vista sociocultural, a série denuncia a responsabilidade das big techs, da mídia e da sociedade em permitir que adolescentes em sofrimento encontrem acolhimento apenas em espaços nocivos. A internet, que poderia ampliar horizontes, torna-se um espaço de reforço de discursos de ódio, misoginia e ressentimento. Fóruns online funcionam como “comunidades substitutas” que validam a dor e a raiva, mas a canalizam para a destruição.
A exposição precoce e desregulada a essas plataformas amplia o isolamento e fortalece crenças disfuncionais. Do ponto de vista sociocultural, a série denuncia a responsabilidade das big techs, da mídia e da sociedade em permitir que adolescentes em sofrimento encontrem acolhimento apenas em espaços nocivos.
O Sintoma de um Sistema Adoecido
A série “Adolescência” oferece, assim, uma potente denúncia das falhas de nossas estruturas de cuidado. Jamie não é o vilão. Ele é o sintoma de um sistema adoecido. Sua trajetória mostra o que acontece quando o cérebro em formação não encontra suporte afetivo, quando a identidade não é validada e quando o sofrimento psíquico não é reconhecido. A narrativa da série não busca absolver Jamie, mas convida o espectador a ir além da condenação fácil. Ela propõe uma escuta complexa, sensível e ética.
Ao integrar neurociência, psicologia, psicanálise, psiquiatria, educação, direito e cultura digital, “Adolescência” se afirma como um retrato pungente da juventude contemporânea. É um chamado para educadores, famílias, profissionais da saúde mental, legisladores e para a sociedade como um todo: não podemos mais ignorar os sinais. O sofrimento psíquico adolescente precisa ser ouvido, compreendido e acolhido — antes que se transforme em tragédia.
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