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21 – Cultura do Cancelamento: A Desumanização Digital

Cultura do Cancelamento - O cancelamento tornou-se um dos fenômenos mais emblemáticos do século XXI, um termo que transcende a simples rejeição e assume contornos de movimento cultural.

Cultura cancelamento – A Cultura do Cancelamento tornou-se um dos fenômenos mais emblemáticos do século XXI, um termo que transcende a simples rejeição e assume contornos de movimento cultural. Nas redes sociais, ele se consolidou como prática de exposição pública, boicote e exclusão de indivíduos acusados de comportamentos considerados moralmente condenáveis.

O “cancelamento” se manifesta através de boicotes, humilhação pública e exclusão social, levantando questões profundas sobre justiça, liberdade de expressão, responsabilidade e saúde mental. Entre a promessa de justiça social e o risco de linchamento virtual.

A cultura do cancelamento pode ser definida como um movimento coletivo, predominantemente online, que visa à exclusão e ao boicote de um indivíduo, marca ou organização em resposta a atitudes ou declarações percebidas como ofensivas, problemáticas ou moralmente reprováveis.

O processo, conforme descrito por especialistas, segue um padrão relativamente previsível: um ato é considerado inadequado, uma crítica inicial é postada em uma rede social e, através do poder de amplificação dos algoritmos e do compartilhamento em massa, transforma-se em uma avalanche de condenação pública [1].

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Apesar de parecer um fenômeno moderno, práticas semelhantes ao cancelamento sempre existiram. Na Grécia Antiga, o ostracismo bania cidadãos da vida pública. Na Idade Média, a Inquisição utilizava a fogueira como punição e exemplo. A diferença da contemporaneidade está na velocidade e irreversibilidade: as redes sociais ampliaram o alcance da punição, transformando erros individuais em espetáculo global.

O objetivo declarado do cancelamento é, em sua essência, uma forma de responsabilização (accountability). No imaginário social, ele funciona como uma espécie de “justiça social” descentralizada, onde a comunidade online se une para reprimir comportamentos considerados inaceitáveis, como racismo, machismo, homofobia ou desinformação, buscando criar uma “lição moral” que iniba futuras transgressões [1].


A História da Cultura do Cancelamento

Embora o termo “cultura do cancelamento” seja relativamente recente, a prática de boicote e exclusão social como forma de protesto não é nova. Pesquisadores traçam suas raízes até movimentos de direitos civis e, mais especificamente, à cultura negra americana, onde “cancelar” alguém era uma “habilidade de sobrevivência” ligada ao boicote econômico e social [2].

A versão moderna do fenômeno ganhou tração e notoriedade com o movimento #MeToo em 2017. Naquele momento, as redes sociais, em especial o X (antigo Twitter), tornaram-se uma plataforma poderosa para que vítimas de assédio e abuso sexual em Hollywood denunciassem seus agressores, levando ao “cancelamento” de figuras até então intocáveis.

Contudo, a partir de 2019, o conceito se popularizou e, segundo analistas, metamorfoseou-se em uma reação muitas vezes desproporcional, atingindo não apenas figuras públicas, mas também cidadãos comuns [1].


O Mecanismo do Cancelamento: A Dinâmica das Redes Sociais

O cancelamento é intrinsecamente ligado à arquitetura das plataformas de mídia social. Especialistas como Issaaf Karhawi, da USP, apontam que o modelo de negócio dessas redes, que privilegia o engajamento através da indignação, favorece a rápida disseminação de polêmicas [3].

A dinâmica é descrita como uma “arena privada gamificada”, onde o julgamento sumário e a aniquilação simbólica do outro, por meio de bullying coletivo, geram visibilidade e interação [4].

Essa estrutura, combinada a uma crescente polarização e a uma baixa tolerância a opiniões divergentes, cria um ambiente onde o diálogo se torna quase impossível. A psicanalista Melissa Bottrel afirma que, na internet, “se alguém diz algo, isso fica gravado como se esse algo fosse a pessoa por inteiro”, eliminando a nuance e a possibilidade de erro ou retratação [3].

 


Impactos Psicológicos do Cancelamento

O fenômeno do cancelamento transcende o debate público e as perdas de reputação, infligindo danos psicológicos severos e, por vezes, permanentes na vida dos envolvidos.

A análise das fontes revela um quadro preocupante que afeta não apenas o indivíduo “cancelado”, mas também aqueles que participam do ato de cancelar e os milhões de observadores silenciosos. Os impactos se manifestam em uma gama de sintomas que vão da ansiedade generalizada a quadros clínicos graves, como depressão e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

A psicologia social aponta que o ser humano tem uma necessidade fundamental de pertencimento. Quando uma pessoa é cancelada, enfrenta um trauma de rejeição coletiva que pode desestruturar sua identidade.

A exclusão pública provoca sentimentos de vergonha tóxica, perda de autoestima, isolamento social e até ideação suicida. O cancelamento não é apenas um ato moral, mas uma ferida psíquica de proporções devastadoras.

Para a pessoa que se torna o alvo de um cancelamento, a experiência é frequentemente descrita como um linchamento virtual. A avalanche de críticas, xingamentos e ameaças desencadeia uma resposta emocional intensa. Especialistas e vítimas relatam um conjunto de consequências devastadoras:

  • Danos Psicológicos Imediatos: Os primeiros impactos são quase sempre de ordem psicológica. O boicote e a repressão podem levar a crises de ansiedade, depressão e até síndrome do pânico [1]. A pesquisa da Verywell Mind corrobora essa visão, associando o ostracismo e o isolamento social resultantes do cancelamento a maiores taxas de ansiedade, depressão e suicídio [5].

  • Crise Existencial e Perda de Identidade: Além dos diagnósticos clínicos, muitos indivíduos cancelados enfrentam uma profunda crise existencial. Eles passam a questionar seus próprios valores, condutas e sua relevância no mundo [1]. A sensação de ter a identidade reduzida a um único erro ou a uma fala descontextualizada é uma queixa comum.

  • Isolamento Social Forçado e Voluntário: O isolamento é uma consequência direta e dupla. Por um lado, é forçado pelos canceladores; por outro, a própria pessoa cancelada tende a se retrair, desenvolvendo um medo de socializar que pode evoluir para um Transtorno de Ansiedade Social [1].

  • Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT): Em casos mais graves, a experiência traumática do cancelamento pode ser comparada a um quadro de TEPT. O psiquiatra Arthur Guerra descreve sintomas como ansiedade persistente, perda de apetite e debilitação geral [4]. A influenciadora Dora Figueiredo, após ser cancelada por um episódio trivial, relatou ter desenvolvido TEPT e pensamentos suicidas, ilustrando a desproporcionalidade entre o “erro” e a punição [3].

  • Paranoia e Medo Constante: O artigo de O Globo descreve vividamente a paranoia que se instala nas vítimas, que passam a sentir uma sensação de perseguição constante e um medo permanente de serem ofendidas ou incompreendidas. A liberdade de expressão é substituída por uma autocensura paralisante [4].

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O Cancelamento e a Neurociência

A neurociência demonstra que o cancelamento ativa no cérebro áreas relacionadas à dor física, como o córtex cingulado anterior. Isso significa que a rejeição social é vivida biologicamente como se fosse uma agressão física.

O aumento de cortisol desregula o equilíbrio neuroquímico, enquanto a amígdala cerebral dispara respostas de medo e o córtex pré-frontal perde sua capacidade de autocontrole. Assim, o cancelamento pode gerar comportamentos impulsivos, ataques de pânico e crises emocionais severas.


O Cancelamento Causa Problemas Psiquiátricos

A psiquiatria identifica no cancelamento um gatilho para o desenvolvimento de transtornos como ansiedade generalizada, depressão grave e até transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

Sintomas como flashbacks, insônia e hipervigilância surgem em pessoas que foram expostas ao julgamento público intenso. Além disso, a exclusão digital frequentemente se transforma em exclusão real, prejudicando laços afetivos e oportunidades profissionais.


Cancelamento, Estigmatização e Desumanização

O cancelamento reduz o indivíduo ao erro cometido. A identidade da pessoa passa a ser confundida com sua falha, criando um estigma difícil de superar. Esse processo de desumanização é perigoso porque nega a possibilidade de aprendizado e transformação. O erro deixa de ser uma etapa natural da vida humana para se tornar uma sentença definitiva de exclusão.


O Prazer Coletivo Em Punir

As redes sociais funcionam como arenas digitais de julgamento. A participação no cancelamento ativa o sistema de recompensa do cérebro, liberando dopamina e reforçando a sensação de pertencimento. Isso explica por que campanhas de cancelamento viralizam com tanta rapidez. Existe prazer em punir, e esse prazer é reforçado pelos algoritmos que premiam conteúdos de alta repercussão.

Mas cultura do cancelamento não deixa incólumes aqueles que a praticam ou a testemunham. A pesquisa da Verywell Mind destaca que o fenômeno pode causar estragos na saúde mental de todos os envolvidos [5].

  • Efeitos nos Canceladores: Engajar-se no ato de cancelar não necessariamente leva a um resultado positivo ou a uma mudança de comportamento do alvo. Em alguns casos, pode ter o efeito oposto, fazendo com que a pessoa ou marca se entrincheire em suas posições.

    Além disso, o cancelador pode ser confrontado com a complexidade moral de suas ações, especialmente quando as consequências para o cancelado se mostram desproporcionais.

  • Efeitos nos Observadores (Bystanders): Talvez um dos impactos mais abrangentes e sutis da cultura do cancelamento seja sobre a vasta maioria silenciosa que observa o espetáculo. O medo de se tornar o próximo alvo gera um clima de ansiedade e autocensura.

    Os observadores temem que qualquer palavra possa ser mal interpretada ou que algo de seu passado possa ser desenterrado e usado contra eles. Isso leva a um silenciamento estratégico, onde as pessoas evitam expressar opiniões, resultando em um empobrecimento do debate público e em um sentimento de culpa por não defenderem quem é injustamente atacado [5].

    A psicanalista Melissa Bottrel nota essa mudança especialmente entre os jovens, que, após a pandemia, parecem ter mais dificuldade em lidar com opiniões divergentes no mundo real [3].


O Paradoxo Da Autenticidade

O mundo atual exige autenticidade, mas pune severamente qualquer falha associada a ela. O medo de ser cancelado gera autocensura, empobrece o debate público e transforma o espaço digital em um ambiente de unanimidade forçada. O cancelamento, nesse sentido, mina a liberdade de expressão e amplia a polarização social.


A Visão Psicanalítica Do Cancelamento

Sob a ótica da psicanálise, o cancelamento pode ser entendido como projeção. A massa projeta no indivíduo cancelado suas próprias culpas e fragilidades. Freud já apontava que o sujeito, diluído no grupo, perde senso crítico e age por pulsões primitivas. O cancelamento, então, revela tanto a vulnerabilidade da vítima quanto o lado sombrio da multidão.


Justiça Social ou Linchamento Virtual?

Não se pode negar que o cancelamento trouxe visibilidade a pautas como racismo, assédio e abuso de poder. Em muitos casos, ele funciona como uma ferramenta de denúncia legítima. O problema está na falta de proporcionalidade. A cultura do cancelamento muitas vezes não diferencia falhas graves de deslizes de linguagem, tratando ambos como crimes imperdoáveis.

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Dados Estatísticos

Uma pesquisa do Instituto Datafolha de junho de 2023 revela um dado surpreendente sobre a percepção do fenômeno no Brasil: 67% dos brasileiros concordam total ou parcialmente que “as pessoas falam mais do que deveriam na internet e por isso merecem ser canceladas quando erram”. Apenas 31% discordam [3].

Esses números mostram uma ampla aceitação da lógica do cancelamento na sociedade brasileira. A aprovação é ainda maior em recortes específicos:

  • 75% entre pessoas com 60 anos ou mais.
  • 76% entre aqueles com ensino fundamental.
  • 71% entre os que ganham até dois salários mínimos.

Esses dados sugerem que a aprovação do cancelamento é mais forte em grupos demográficos que, paradoxalmente, podem ter menos familiaridade com as dinâmicas e as consequências brutais das redes sociais. Isso indica uma desconexão entre a percepção teórica do cancelamento como uma forma de “justiça” e a realidade de seus impactos na saúde mental e na vida das pessoas.


Desigualdade de Poder e a Economia da Atenção

A teoria por trás dessa perspectiva se baseia na compreensão das redes sociais como um espaço de poder desigual, onde a visibilidade e a atenção são mercadorias valiosas.

Movimentos que não desafiam profundamente as estruturas de poder existentes tendem a ser mais “palatáveis” e, portanto, mais visíveis. O cancelamento, nesse contexto, pode ser uma tática para subverter essa lógica.

Ao “cancelar” uma voz poderosa e prejudicial, os grupos marginalizados conseguem, ainda que temporariamente, tornar suas próprias narrativas e demandas visíveis. Para que certas práticas e imagens se tornem visíveis, argumentam os teóricos, outras — aquelas que perpetuam a desigualdade — devem ser tornadas invisíveis [2].

O cancelamento seria, portanto, uma disputa pela atenção na economia digital, uma tentativa de reequilibrar a balança da visibilidade.

É crucial, no entanto, manter a distinção feita por especialistas como Clara Becker, da ONG Redes Cordiais: uma coisa é silenciar um discurso criminoso ou de ódio, e outra são os cancelamentos que ocorrem por disputas de poder, visibilidade ou simples divergência de opinião [3].

A perspectiva da validação coletiva se aplica principalmente ao primeiro cenário, onde o cancelamento atua como uma resposta a danos claros e sistêmicos, e não como uma ferramenta para silenciar o dissenso legítimo.

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Um espelho da Sociedade

O cancelamento é um espelho. Ele revela a busca por justiça, mas também expõe nossas tendências à intolerância e à violência simbólica. Seu impacto psicológico, psiquiátrico e neurocientífico mostra que não se trata apenas de uma prática cultural, mas de um fenômeno que afeta profundamente vidas humanas.

A cultura do cancelamento é um fenômeno antigo que tem por objetivo obrigar as pessoas a mudarem sua visão de mundo e sua percepção frente a um tema. Por um lado, emerge como uma força destrutiva, capaz de infligir traumas psicológicos profundos, promover o isolamento social e empobrecer o debate público através da instauração de um clima de medo e autocensura.

As evidências de seus impactos negativos sobre a saúde mental de cancelados e observadores são robustas e alarmantes. A facilidade com que a punição se torna desproporcional ao erro, alimentada pela arquitetura do engajamento das redes sociais, representa um desafio significativo aos princípios de justiça, perdão e diálogo.

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Referências

[1] Psitto. (2024, 24 de janeiro). A cultura do cancelamento: O que é e quais as consequências! https://www.psitto.com.br/blog/cultura-do-cancelamento/

[2] Traversa, M., Tian, Y., & Wright, S. C. (2023). Cancel culture can be collectively validating for groups experiencing harm. Frontiers in Psychology, 14. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC10399695/

[3] Saraiva, R. (2023, 29 de junho). Datafolha: População aprova cancelamento em redes sociais. Folha de S.Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/tec/2023/06/populacao-aprova-cancelamento-em-redes-sociais-aponta-datafolha.shtml

[4] Rosário, M. (2023, 27 de maio). Trauma, solidão e paranoia: como a cultura do cancelamento deteriora a saúde mental. O Globo. https://oglobo.globo.com/saude/bem-estar/noticia/2023/05/trauma-solidao-e-paranoia-como-a-cultura-do-cancelamento-deteriora-a-saude-mental.ghtml

[5] Toler, L. (2025, 30 de julho). The Mental Health Effects of Cancel Culture. Verywell Mind. https://www.verywellmind.com/the-mental-health-effects-of-cancel-culture-5119201

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