Criminal

31 – Método VERA

Método VERA - vítima, cena, reconstrução e autor na prática

Método VERA – Em meio às diferentes escolas metodológicas disponíveis para o Criminal Profile, uma abordagem criada e aplicada na Espanha vem chamando a atenção pela organização, pelo rigor técnico e pela utilidade direta na investigação operativa: o método VERA.

O acrônimo corresponde a Vítima, Escena (Cena), Reconstrução e Autor — na formulação original em espanhol — e descreve, ao mesmo tempo, os pilares e a sequência lógica de análise. Desenvolvido por Juan Isoto Castro, psicólogo e investigador à frente da Sessão de Análise de Conduta (CNP), o VERA tem sido utilizado em homicídios, sequestros, roubos, agressões sexuais (casos únicos ou em série) e em desaparecimentos de alto risco, com resultados que o consolidam como um dos métodos mais profissionais e eficientes para definição de perfis criminais.


Por Que Usar o Método VERA?

Quem atua na ponta das investigações sabe que qualidade de método decide qualidade de hipótese. Em casos complexos (ou com grande exposição pública), a tendência é que equipes lidem com um volume massivo de dados, nem sempre estruturados, às vezes redundantes, às vezes contraditórios. O VERA nasce justamente para organizar esse caos e transformá-lo em hipóteses testáveis, com trilhas operacionais claras.

O VERA atua em três movimentos:

  1. Classificação rigorosa dos dados (com códigos simples, padronizados e rastreáveis),
  2. Inferências registradas e objetivas (cada passo anotado, com vínculo ao dado de origem),
  3. Hipóteses progressivas, que alimentam o traçado do perfil e são passíveis de refutação à medida que novas informações chegam.

O método pede disciplina de quem analisa, fala a língua da investigação e produz resultados auditáveis — um kit raro quando se trata de comportamentos humanos em contexto de crime.


O que é o VERA

O VERA é um procedimento de análise e decisão que se apoia em quatro eixos:

  • V — Vítima: leitura vitimológica exaustiva, com foco em acessibilidade e vulnerabilidade, entendendo por que aquela pessoa (e não outra) atende a necessidades do agressor.
  • E — Escena (Cena): estudo de todos os locais relevantes (preparação, contato, consumação, abandono) e do tempo (porque o mesmo espaço muda de sentido em horários diferentes).
  • R — Reconstrução: cronologia e sucessão de eventos, ordenados a partir de vestígios e testemunhos, para responder como o fato aconteceu.
  • A — Autor: consolidação do que já se sabe (e do que não se sabe) sobre o agressor, em atributos físicos e comportamentais úteis à investigação.

O método combina psicologia, experiência investigativa e procedimentos periciais. Seu objetivo não é “dar um palpite fundamentado”, mas montar um raciocínio cumulativo, em que cada peça tem origem clara e impacto prático.


A Espinha Dorsal do VERA

Uma assinatura marcante do método espanhol é a codificação. Tudo que entra — e tudo que sai — é etiquetado para manter rastreabilidade.

1) Dados (D)

  • Cada dado coletado recebe um código iniciando com D (de Dado).
  • A segunda letra indica o bloco: V (vítima), E (cena), A (autor) — e, se desejado pelo time, outros blocos auxiliares (por exemplo, T para testemunhos, L para laudos).
  • Em seguida, um número sequencial: DV-01, DE-07, DA-03

Ex.:
DV-01: rotina de saída para o trabalho às 7h20.
DE-07: luzes internas apagadas às 14h (registro do disjuntor inteligente).
DA-03: imagem de câmera sugere estatura aproximada de 1,78 m (capuz).

2) Inferências (I)

  • Cada inferência recebe código com I (de Inferência) e o bloco correspondente.
  • Toda inferência aponta para os dados que a sustentam (por exemplo, [DE-07, DV-01]).

Ex.:
IE-02: apagamento de luz às 14h em dia útil não é conduta usual no domicílio (base: DE-07, DV-01).
IV-03: seleção da vítima por frequência e previsibilidade de rotas (base: DV-01, DV-04, câmeras do quarteirão).

3) Hipóteses (H)

  • As hipóteses são codificadas com H (de Hipótese) e podem ser progressivas — uma deriva da outra.
  • Devem vir acompanhadas de: alcance, condição de refutação e próxima diligência sugerida.

Ex.:
HE-01: autor tinha conhecimento prévio do interior do imóvel.
— Alcance: alto (explica circulação fluida e busca seletiva).
— Refutação: evidência de preparação externa (planta, vídeo de corretora, réplica) + sinais de hesitação registrados por câmeras internas.
— Diligência: rastrear prestadores com acesso recente e vizinhos com obras.

Essa tripla (D–I–H) protege a linha de raciocínio contra vieses e facilita a auditoria posterior: toda conclusão tem “CPF”.


Primeira Fase do VERA: Coleta de Dados

Na chegada ao caso, a equipe aplica um funil: coleta ampla, classificação imediata, anotação sem interpretação. O método exige que se distingam quatro conceitos que costumam se confundir:

  • Modus operandi: como o crime é cometido do ponto de vista técnico-funcional (acesso, controle, subtração, fuga).
  • Ritual: elemento repetitivo sem função instrumental direta, mas que aparece pela necessidade do autor (ex.: frases padronizadas, objetos sempre reposicionados).
  • Encenação: tentativa de simular uma narrativa (ex.: cenas plantadas de “assalto”, “ciúme”, “suicídio”).
  • Assinatura: padrão muito individual, que atende a uma necessidade psicológica e tende a persistir (diferente do modus operandi, que pode mudar).

Durante a coleta, cada item é registrado como D e não recebe análise valorativa. Só na fase seguinte ele “vira” I ou alimenta uma H.


Segunda Fase: Inferências Rigorosas e Objetivas

Com os dados classificados, o time formula inferências. Aqui valem três mandamentos:

  1. Objetividade: toda inferência tem de apontar para dados.
  2. Clareza: escrever de forma que qualquer integrante da investigação entenda.
  3. Controle de alcance: dizer o que a inferência explica — e o que não explica.

Ex.:
IE-05: posição do corpo e ausência de arrasto sugerem morte no local (D: fotos com escala; laudo preliminar).
IV-06: última conversa por app indica ausência de conflito com círculo íntimo nas 24h anteriores (D: prints periciados).

Inferência não é certeza; é passarela para a hipótese.


Terceira Fase: Hipóteses Progressivas
Que Preparam o Perfil

Hipóteses são propostas de realidade: precisam ser úteis, falsificáveis e operacionais. O VERA recomenda construí-las em progressão, documentando derivações (H-02 nasce de H-01 + novos dados).

Ex.:
HE-03 (derivada de HE-01): autor conhecia rotas de fuga internas e externas.
— Base: maçanetas sem marca recente de tentativas; tempo total do evento calculado por câmera de rua; portão voltou a travar.
— Diligência: cruzar placas reconhecidas com janela de 7 minutos; pedir imagens de garagem vizinha.

Ao final da fase, a equipe dispõe de um mapa de hipóteses com prioridades. É esse mapa que, somado a V–E–R–A, alimenta o perfil.


V de Vítima: Vitimologia

O método orienta começar pelo perfil vitimológico, porque ele responde duas perguntas que enquadram todo o resto:

  1. Como o autor chegou até ela? (acessibilidade)
  2. Por que esta vítima, e não outra? (vulnerabilidade/adequação ao alvo)

O que levantar sobre a vítima

  • Rotinas e previsibilidade (trajetos, horários, pontos cegos).
  • Vínculos (afetivos, profissionais, financeiros).
  • Exposição digital (postagens, check-ins, conteúdo público).
  • Contexto recente (conflitos, mudanças, gatilhos).
  • Recursos de proteção (trancas, câmeras, companhia, protocolos).

Exemplo prático: uma vítima que anuncia horários de treino noturno e volta sempre por ruas pouco iluminadas torna-se acessível para um autor que busca baixo risco de observação. Isso não culpa a vítima — apenas explica como a seleção pode ter ocorrido.


Escena (Cena): Espaço + Tempo

A cena não é “onde o corpo foi encontrado”. Para o VERA, todos os locais que tiveram interação autor–vítima contam: preparação, abordagem, consumação, abandono. E tudo isso no tempo certo, porque dia e noite, feriado e terça-feira, chuva e estiagem mudam o significado do mesmo espaço.

Três lentes para a cena

  • Espacial: público/privado, aberto/fechado, acesso fácil/difícil, cobertura de câmeras, rotas de fuga.
  • Temporal: horário, duração provável, janelas de ruído, eventos simultâneos (jogo, show, feira).
  • Vitimológica integrada: lesões como cena (porque o corpo é lugar de interação) — tipo de ferida, direção, compatibilidade com objetos, padrão de defesa.

Perguntas-chave: por que este lugar? por que neste momento? em que ordem as lesões foram causadas?


Reconstrução: Responder “Como Aconteceu”

A reconstrução (hipercriminis) ordena os eventos em sequência. O objetivo é transformar fragmentos em linha do tempo, sem colar peças que não se tocam.

Fontes usuais para a reconstrução

  • Imagens (CFTV, vizinhança, trânsito, dispositivos domésticos).
  • Telemetria (celular, smartwatch, carro conectado).
  • Laudos (traumatologia, balística, DNA, informática).
  • Entrevistas (testemunhas, familiares, vizinhos), com cuidado para não induzir.
  • Contexto urbano (obras, interdições, eventos esportivos).

A reconstrução não é filme; é hipótese cronológica sustentada por pedaços verificáveis. Onde há lacuna, o método pede marcações (“trecho sem dados; duas possibilidades”).


Autor

Autor não é rótulo; é convergência de atributos operacionais. O VERA recomenda listar o que se sabe com certeza, o que se estima com base nas hipóteses e o que falta.

Atributos úteis de autor

  • Acesso: conhecia a vítima? foi facilitado por terceiros?
  • Controle: verbal, físico, instrumental; escalonou?
  • Risco: tolerância alta/baixa; medidas de contra-forense.
  • Território: atua em zona de conforto ou como “commuter”?
  • Escolha de alvo: dirigido, oportunista, simbólico.
  • Pós-ofensa: limpeza, encobrimento, souvenires, contato posterior.

Evite adivinhar idade, sexo ou “nível de inteligência” sem evidências físicas que sustentem — e indique explicitamente quando a informação é insuficiente.


Exemplos do VERA

Exemplo 1 — Homicídio residencial com subtração seletiva

  • Dados: porta sem arrombamento (DE-03); DVR removido (DE-05); gavetas do escritório reviradas (DE-08); tempo de evento estimado em 9 min (DE-12); vítima com trauma contundente (DV-11); vizinho ouviu discussão curta (DT-02).
  • Inferências: circulação fluida (IE-04); foco em objetos/documentos específicos (IE-06); escalada situacional (IE-07).
  • Hipóteses: HE-01 (conhecimento prévio de rotina); HE-02 (morte como consequência não planejada); HE-03 (contramedidas moderadas).
  • Perfil operacional: provável vínculo indireto; habilidade mediana; risco calculado; possibilidade de repetição baixa.
  • Diligências: buscar prestadores com acesso à porta de serviço; cruzar placas de utilitários; rastrear comércio de DVR compatível.

Exemplo 2 — Agressão sexual em via pública com encenação de assalto

  • Dados: carteira intacta (DE-09); peças de roupa reposicionadas (DE-10); palavras repetidas (“aprender a respeitar”, DT-03); lâmpadas da praça apagadas por falha prévia (DE-11).
  • Inferências: encenação de roubo (IE-08); componente de humilhação (IE-09); escolha por baixa visibilidade (IE-10).
  • Hipóteses: HV-02 (alvo simbólico); HE-04 (uso de falha de iluminação como elemento de oportunidade).
  • Perfil operacional: autor local, baixa preocupação com contramedidas, teatralidade pós-evento.
  • Diligências: mapear ocorrências anteriores na mesma praça; checar perfis com histórico de violência verbal pública; reforçar perímetro de câmeras.

Exemplo 3 — Desaparecimento de alto risco

  • Dados: última conexão às 22h17 (DA-05); carro parado em rua lateral sem câmeras (DE-14); mensagem para familiar “já estou chegando” (DV-13); relógio inteligente indica pausa súbita (DA-06).
  • Inferências: abordagem planejada com previsibilidade de rota (IE-11); provável dois autores (IE-12 — evidências de tarefas simultâneas).
  • Hipóteses: HE-05 (preparação com vigilância prévia); HV-03 (seleção por rotina estável).
  • Perfil operacional: dupla com coordenação simples; zona de conforto próxima.
  • Diligências: varredura de ANPR (leitura de placas) na rua lateral; entrevista ampliada com pessoas do entorno sobre carros parados recorrentes.

Progressão Cumulativa e Banco de Conhecimento

Além de orientar a investigação agora, o VERA pensa no futuro. Como dados, inferências e hipóteses ficam codificados, é possível:

  • Comparar perfis traçados com o perfil real após a prisão (aprendizado contínuo).
  • Construir bancos estatísticos por tipologia criminal e padrões de conduta.
  • Refinar protocolos com base em what worked / what didn’t (o que funcionou, o que não funcionou).

Essa retroalimentação transforma a metodologia em plataforma de melhoria — útil para formação de equipes, pesquisas e elaboração de boas práticas.


Boas Práticas

  • Documente a origem de cada inferência e hipótese (códigos D vinculados).
  • Evite rótulos clínicos sem avaliação direta; prefira atributos operacionais.
  • Diferencie ausência de vestígio de vestígio de ausência (não ver algo não prova que não exista).
  • Escreva para o time: linguagem simples, ação clara.
  • Declare incertezas e condições de refutação — isso fortalece o perfil.
  • Atualize o mapa de hipóteses quando novas informações chegarem; VERA é iterativo.
  • Cuide da cadeia de custódia: nenhuma inferência vale se a base material for contaminada.

Integração do VERA com Outras Escolas:

  • Psicologia Investigativa: oferece o olhar de padrões amplos; o VERA aterra essas pistas em dados codificados.
  • Análise de Evidências Comportamentais (AEC): parentesco direto; ambos valorizam singularidade e vestígio. O VERA adiciona ritmo de codificação e progressão.
  • CAP (Criminal Action Profiling): o VERA fornece variáveis comportamentais robustas para alimentar modelos comparativos.
  • Geoprofile: a leitura E–R (Cena + Reconstrução) gera sequências espaciais que o geoprofile pode modelar.

Não há competição; há complementaridade. O que muda é o ponto de partida e o modo de registro.


Dúvidas Comuns

O VERA “descobre” o autor?
Não. Ele organiza dados e aponta hipóteses testáveis que aproximam a investigação da autoria.

E se houver pouco dado?
O método ainda funciona, mas com faixas maiores de incerteza. A codificação ajuda a não exagerar conclusões.

Como lida com casos em série?
A codificação compara casos com precisão (rituais, encenações, assinaturas). A progressão de hipóteses identifica constâncias e variações.

Dá para usar em equipe grande?
Sim — é um dos pontos fortes. Códigos e planilhas padronizam a comunicação e reduzem ruído.

E o tempo de aplicação?
O investimento inicial em organização economiza horas de “vai e volta”. O retorno é visto no curto prazo (diligências melhores) e no longo (aprendizado acumulado).


O método VERA entrega o que unidades investigativas mais precisam: clareza, rastreabilidade e utilidade prática. Ao codificar dados, registrar inferências e explicitar hipóteses, a equipe deixa de depender de memória ou de “sensação” e passa a trabalhar com um corpo vivo de conhecimento, que cresce a cada novo elemento.

Em crimes únicos, em séries de agressões, em desaparecimentos com alto risco, a lógica VERA — Vítima, Cena, Reconstrução, Autordiminui erros, prioriza melhor e facilita a prova.

Artigos Relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo