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35 – Psicologia Investigativa e a Equação AC

Psicologia Investigativa - David Canter, psicólogo britânico que sistematizou a Psicologia Investigativa e propôs um arcabouço operacional que mudou a forma de construir perfis criminais

Psicologia Investigativa e a Equação AC – Quando um crime violento acontece, as primeiras perguntas costumam ser as mesmas: quem fez, por quê e como. Na última década, a psicologia aplicada à investigação passou a oferecer respostas mais consistentes a essas questões, apoiando-se em evidências, padrões empíricos e procedimentos replicáveis.

Entre os nomes que colocaram método onde antes predominava a intuição, um se destaca: David Canter, psicólogo britânico que sistematizou a Psicologia Investigativa e propôs um arcabouço operacional que mudou a forma de construir perfis criminais.

Entenda como funciona o modelo dos 5 fatores e a Equação AC — ferramentas que, quando bem aplicadas, ajudam a aproximar ações observáveis do crime de características do ofensor.


O que é Psicologia Investigativa

A Psicologia Investigativa nasce da pergunta: é possível inferir, com base em dados, elementos sobre quem cometeu um crime a partir do que ele fez durante o crime? Segundo David Canter é possível sim, desde que as inferências sejam ancoradas em pesquisa empírica e analisadas por meio de uma estrutura lógica de decisão.

Em vez de palpites, a proposta envolve:

  1. Coleta e análise de informações: tudo que é observável na cena, no corpo da vítima, nas rotas de fuga, nos horários, nos objetos manipulados ou descartados.
  2. Tomada de decisão e ação: priorização de hipóteses, triagem de suspeitos, definição de buscas, reentrevistas, experimentos investigativos.
  3. Sistemas de organização das inferências: taxonomias, bancos de padrões, tipologias funcionais e modelos que ajudaram a interpretar comportamentos.

Não se trata de adotar um “olhar psicológico” genérico, mas de usar a ciência do comportamento para responder a perguntas operacionais:

  1. Qual o raio provável de residência?
  2. Que rotinas essa pessoa aparenta ter?
  3. Há sinais de aprendizagem entre um crime e outro?
  4. O autor conhece procedimentos policiais?
  5. A vítima foi escolhida por acessibilidade ou por traço específico?

Essa é a ponte que liga o que aconteceu ao quem é provável que tenha feito.


Os 5 Fatores

Canter sistematizou um conjunto de dimensões que, combinadas, costumam oferecer pistas robustas. São os 5 fatores: coerência interpessoal, significado de tempo, características criminais, carreira criminosa e consciência forense.

1) Coerência interpessoal: o crime como extensão da vida social

A hipótese central aqui é simples: o jeito de tratar a vítima tende a refletir o jeito de tratar pessoas no cotidiano. Um agressor que humilha pode ser alguém que, socialmente, age com controle e desprezo; um ofensor metódico tende a exibir ordem e previsibilidade no trabalho, em casa, nos deslocamentos.

Essa coerência não é absoluta. Pessoas inibidas podem explodir dentro de um ato, assim como sujeitos afáveis podem ser cruéis em privado. Mas, ao longo de séries criminais, padrões aparecem. E eles ajudam a:

  • Ligar casos quando não há DNA, digitais ou imagens nítidas;
  • Direcionar entrevistas com vizinhos e conhecidos;
  • Estimar traços de personalidade relevantes para vigilância e abordagem.

Imagine uma sequência de assaltos com humilhação ritual de vítimas — xingamentos específicos, imposição de posturas, teatralização do poder. Esse detalhe, repetido em três eventos, não “prova” a identidade de ninguém, mas é um marcador de estilo interpessoal que pode reaparecer no trabalho, em redes sociais, em relatos de ex-companheiras. É um fio a puxar.

2) Significado de tempo: o relógio como assinatura invisível

Crimes acontecem em janelas temporais que não são aleatórias. O horário escolhido costuma revelar quando o autor está livre ou quando acredita estar menos exposto. Crimes de dia podem sugerir disponibilidade diurna; ataques sempre às segundas, perto do horário escolar, sugerem rotinas que se repetem.

Tempo e espaço andam juntos: é comum mapear ocorrências num GIS básico e observar clusters ou “corredores” de atuação. Não é cinema: é uma geografia comportamental que relaciona:

  • Cronologia dos crimes: o perímetro costuma crescer com a experiência;
  • Idade: ofensores jovens operam perto de casa; mais velhos tendem a se deslocar;
  • Capacidade cognitiva: maiores distâncias e rotas menos óbvias exigem planejamento;
  • Estado civil: casados, muitas vezes, evitam longas ausências;
  • Vínculo laboral: horários de trabalho modulam disponibilidade;
  • Motivação: predadores sexuais planejam mais; ladrões oportunistas se moldam ao acaso;
  • Transporte: carro próprio amplia raio e permite trocas de município sem vestígios de bilhetagem.

Essas variáveis não rotulam pessoas; elas organizam hipóteses. Se quatro roubos relâmpago com o mesmo padrão ocorreram entre 12h e 14h, em ruas a duas quadras de um corredor de ônibus, a investigação já pode focalizar deslocamentos a pé entre almoços, saídas de escola, horários de intervalos. Pode parecer óbvio, mas sistematizar o óbvio reduz erros.

3) Características criminais: o que foi feito, como e em que ordem

Aqui entram as tipologias funcionais: quando ações se agrupam de forma coerente, sugerem motivações e competências específicas. A ênfase está no que excede o acaso — não basta ter uma faca; importa como foi exibida, quando, com que palavras, em que passo da sequência.

Essa leitura depende de pesquisa aplicada. Bancos de casos mostram que certos arranjos comportamentais correlacionam-se com perfis diferentes. Um sequestro relâmpago com transferência via PIX logo no início, sem xingamentos, sem violência gratuita, aponta para um ofensor instrumental, focado no ganho e na rapidez. Uma agressão com insultos sexuais, exposição do corpo e controle sobre as roupas sinaliza componentes expressivos e fantasias que, se repetem, sustentam uma classificação útil para priorização.

É vital repetir: tipologia não é sentença. Ela orienta, não condena. Serve para decidir o próximo passo — quem reentrevistar, que imagens buscar, que perícia complementar pedir.

4) Carreira criminosa: aprender, mudar, persistir

Offensores aprendem. E o crime, assim como qualquer prática humana, evolui com repetição, medo e sucesso. Mudanças no modus operandi — a ferramenta escolhida, o ponto de abordagem, o manejo de vestígios — podem indicar contato prévio com a polícia, leitura de notícias do próprio caso ou conversas no submundo.

Um autor que, nas primeiras ações, deixa digitais em portas e, três eventos depois, passa a usar luvas de pano pode ter entendido os riscos. Outro que abandona o ponto de ônibus mal iluminado depois que a prefeitura trocou lâmpadas provavelmente fez leitura do contexto. São micro-sinais de que alguém está prestando atenção e ajustando rota.

Essa dimensão ajuda a ordenar cronologias e a vincular casos que antes pareciam desconexos. Também prepara a equipe para mudanças que virão — afinal, o adversário se adapta.

5) Consciência forense: o crime olha para a perícia

Alguns criminosos sabem o que procurar e o que apagar. Outros acreditam saber — e cometem erros reveladores. A chamada consciência forense aparece quando há medidas anti-forenses: limpeza de superfícies de contato, troca de placas, uso de capuzes, apagamento de dados em celulares, queima de roupas, dispersão de objetos em lixeiras diferentes.

Esses comportamentos não são prova de nada por si só, mas ajudam a levantar hipóteses:

  • Profissão anterior com contato com polícia?
  • Familiar ou amigo policial repassando conselhos?
  • Consumo de mídia criminalística?
  • Histórico de prisão ou audiência?

Combinar consciência forense alta com erro grosseiro (por exemplo, limpar maçanetas e esquecer a pegada ensanguentada que revela o número do calçado) ensina algo ainda mais útil: o limite de competência do autor. Isso orienta buscas, interrogatórios e até a estrutura de armadilhas (horários, pistas, encenações).


A Equação AC: Ligar Ação (A) a Características (C)
Por Meio De Inferência Responsável

O segundo pilar conceitual de Canter é um modelo de raciocínio. Ele o apresenta como a Equação AC:

  • A = Ações do crime (o que aconteceu, onde, quando, em que sequência);
  • = Processo de inferência (ponte teórica e empírica que liga ação a traço);
  • C = Características do ofensor (físicas, cognitivas, sociais, geográficas, psicopatológicas, de personalidade e de carreira).

A força desse esquema está no seta — a ponte. É ali que moram a teoria e os dados. Dizer que alguém que aborda vítimas ao amanhecer deve trabalhar à noite é um salto indevido. Agora, dizer que é plausível que tenha mais disponibilidade no período matutino porque três eventos ocorreram entre 5h40 e 6h10, a 400 metros de um terminal de ônibus, em dias úteis, e que isso merece ser testado com buscas específicas — isso é uma inferência auditável e operável.

Duas hipóteses-guia tornam a seta mais honesta:

Hipótese da consistência

Alguns traços comportamentais se mantêm em diferentes contextos. O que alguém faz sob estresse extremo tende a refletir práticas aprendidas na vida. É o caso da ordem (ou da falta dela), das palavras utilizadas, do controle de rotas, da economia de movimentos. Mais uma vez: tendência, não regra.

Hipótese da diferenciação

Crimes e criminosos não são todos iguais. Combinações de ações distinguem tipos de ofensor. Uma sequência marcada por planejamento, escolha de locais com baixa vigilância, ausência de ofensas verbais e foco em bens tende a diferir de outra pontuada por humilhação explícita, mutilação e pós-ofensa. Diferentes perfis pedem diferentes estratégias de investigação e prevenção.

A Equação AC, como ferramental, ganha vida quando amparada por séries de casos, meta-análises e treinamento. Um perfil não nasce do nada; ele é construído com observação rigorosa, linguagem precisa e uma dose saudável de ceticismo.


Como Isso Entra Na Investigação?

A teoria de Canter orienta decisões. Abaixo, um roteiro que equipes vêm adotando com bons resultados práticos.

1) Consolidar dados limpos

Padrões só surgem quando os dados estão padronizados. Endereços com CEP, horários no mesmo fuso, descrição de ações com vocabulário consistente (“abordagem frontal”, “ameaça com arma branca exibida”, “ordem para deitar”, “busca por PIX”). Fotografias, croquis, vídeos e laudos entram com metadados completos.

2) Mapear tempo e espaço

Uma planilha com dia/semana, hora, tempo de ação, distância entre locais e características do entorno (luz, fluxo de pedestres, presença de CFTV) costuma revelar janelas de conveniência e corredores de fuga. O mapa não prende ninguém, mas prioriza buscas e pontos de observação.

3) Ler a coerência interpessoal

O “clima da abordagem” informa motivações. Foi frio e rápido? Houve exibição de poder? O autor usou apelidos degradantes? Riu? Pediu “desculpa” à vítima? Esses detalhes, anotados com rigor, compõem um estilo que volta a aparecer.

4) Medir (e testar) consciência forense

contramedidas? Troca de camiseta, luva improvisada, toalha em maçaneta, celular em modo avião, desmonte de câmeras, esvaziamento de lixeiras? Se sim, vale testar iscas e ambientes monitorados para verificar reação.

5) Formular hipóteses AC auditáveis

A cada inferência, a equipe documenta:
“Aconteceu A (abordagem 6h05, rua lateral, sem xingamento, busca por PIX). A literatura indica que tal combinação é compatível com C (indivíduo instrumental, disponibilidade matutina, deslocamento a pé ou bicicleta). Próximas ações: vigilância de 5h30–7h; pedido de imagens de portais; questionário com comerciantes de rua.”

O perfil é, acima de tudo, um plano de ação.


Casos Ilustrativos

Para preservar pessoas e processos, os casos abaixo são vignettes pedagógicas que aglutinam elementos recorrentes de investigações reais.

O ladrão dos 12 minutos

Quatro roubos a pedestres em três semanas, sempre entre 12h e 14h, a no máximo 600 metros de um terminal. O autor chega por ruas paralelas, não xinga, não revira bolsas, exige celular desbloqueado, transfere valores modestos por PIX, devolve o aparelho e some.

  • Significado de tempo: janelas de almoço;
  • Comportamento espacial: rotas com ruas de saída e baixa vigilância;
  • Características criminais: instrumentalidade;
  • Carreira criminosa: ajuste fino no valor transferido (evita chamar atenção);
  • Consciência forense: nenhuma dramatização e pouco contato físico.

Inferência AC: baixa probabilidade de residência distante; provável deslocamento a pé/bicicleta; rotina diurna livre; perfil econômico pressionado. Plano de ação: varredura de CFTV no entorno de ruas de fuga, antenas de celular na janela do crime, visitas a pequenos comércios para reconhecimento de padrões.

A vergonha como arma

Assaltante entra em dois bancos comunitários, ordena que clientes fiquem nus, não fotografa, não agride, vai aos caixas e foge.

  • Coerência interpessoal: controle por constrangimento;
  • Características criminais: ausência de elementos sexuais;
  • Consciência forense: reduz chance de testemunhas encararem o rosto;
  • Significado de tempo e espaço: locais com saída múltipla.

Inferência AC: estratégia deliberada de reduzir identificação; perfil planejador; risco baixo de escalada sexual. Foco investigativo: rotas de fuga, veículos próximos, câmeras na periferia da cena (não no interior, onde todos desviam o olhar).


Psicologia Investigativa e o FBI

Séries e filmes popularizaram o profiling a partir de experiências norte-americanas, sobretudo do FBI. A Psicologia Investigativa de Canter diverge em dois pontos fundamentais:

  • Base empírica: a ênfase de Canter está em dados e modelos testáveis. Generalizações amplas e tipificações sem base estatística não entram no relatório.
  • Idioma da decisão: perfis são escritos com hipóteses auditáveis, com “próximos passos” claros para a equipe. Não são ensaios sobre “mentes criminosas”, e sim roteiros operacionais.

Isso não torna uma escola “melhor” do que a outra em termos absolutos. Em campo, equipes maduras combinam repertórios. O que se aprende com o FBI sobre assinatua e modos operandi conversa com a ênfase de Canter em tempo/espaço e consistência/diferenciação. A chave é explicitar as premissas e evitar saltos.


O Que Não Fazer

A Psicologia Investigativa é poderosa — e, por isso, perigosa quando mal usada. Alguns alertas:

  • Não patologizar sem base: chamar alguém de psicopata porque humilhou a vítima é especulativo e irrelevante para a próxima diligência.
  • Não confundir correlação com certeza: jovens ofendem mais perto de casa — mas nem todo jovem mora ao lado da cena.
  • Não usar perfil como prova: perfil orienta; não condena.
  • Não desprezar o contraditório: hipóteses AC devem ser refutáveis. Se não passam por testes simples, devem cair.
  • Não ignorar vieses: linguagem policial, mídia e cultura local influenciam percepções. Profissionais precisam de supervisão e treino para reduzir projeções.

Em síntese: ciência é humildade. Todo resultado deve vir com grau de confiança e plano de validação.


Importante

  1. Treino em descrição comportamental: aprender a escrever o “o que aconteceu” sem adjetivos.
  2. Noções de geografia do crime: leitura de mapas, distâncias de caminhada, corredores de ônibus, polos geradores de fluxo.
  3. Bancos de padrões: criar repositórios locais de sequências comportamentais validadas pela equipe.
  4. Rituais de revisão: reuniões curtas em que a hipótese AC é colocada à prova por alguém de fora do caso.
  5. Parceria com perícia: o fator “consciência forense” só se revela plenamente com diálogo técnico.
  6. Escrita operacional: cada inferência acompanha uma ação e um critério de refutação.

O ganho é cumulativo: quanto mais casos com dados bem descritos entram, mais afiada fica a seta entre A e C.


Saiba Mais….

Psicologia Investigativa é a mesma coisa que perfil criminal?
Não exatamente. Perfil criminal é um produto possível dentro de uma investigação. Psicologia Investigativa é um campo que oferece métodos, modelos e critérios para que esse produto seja mais confiável e útil.

O que é a Equação AC de David Canter?
É um esquema de raciocínio que liga Ações observadas no crime (A) a Características do ofensor (C) por meio de uma inferência sustentada em teoria e dados (a “seta”). Ajuda a escrever hipóteses testáveis e úteis.

Quais são os 5 fatores do modelo de Canter?
Coerência interpessoal, significado de tempo, características criminais, carreira criminosa e consciência forense. Juntos, eles oferecem uma lente para ler ações e formular hipóteses.

Psicologia Investigativa “adivinha” o agressor?
Não. Ela organiza o que se sabe para aumentar a probabilidade de decisões acertadas: onde vasculhar, quem reentrevistar, quais imagens pedir, que perícia complementar solicitar.

Pode condenar alguém com base em perfil?
Não. Perfil não é prova. Serve para orientar a investigação e gerar linhas de ação.

Como se aplica no Brasil?
Os princípios são gerais. É preciso adaptar às realidades de dados, infraestrutura e cultura local, treinando equipes para padronizar descrições e reunir bases de casos.


Três caminhos devem ganhar corpo nos próximos anos:

  1. Dados abertos urbanos: iluminação pública, fluxo de pessoas, eventos e obras entrando como camadas que ajudam a explicar escolhas de local e tempo.
  2. Aprendizado de máquina explicado: modelos que sugerem padrões, com “caixas de vidro” que mostram por que sugeriram, preservando a capacidade humana de cruzar com contexto.
  3. Interoperabilidade: padronização de vocabulário entre polícia, perícia, MP e Judiciário, de modo que uma “ameaça verbal específica” signifique o mesmo em todos os relatórios.

A tecnologia não substitui o raciocínio da Equação AC. Ela amplifica sua potência — desde que os dados sejam bons e as perguntas, claras.


A contribuição de David Canter para o perfil criminal é, antes de tudo, uma contribuição para a boa investigação. O modelo dos 5 fatores ensina a olhar para o que costuma passar batido: a coerência entre o que se faz no crime e fora dele; o tempo e o espaço como pistas; o que os padrões funcionais dizem sobre motivação; como a carreira muda o crime; onde a consciência forense denuncia conhecimento — ou a falta dele.

A Equação AC dá linguagem a esse olhar: A não vira C por mágica; passa por uma ponte feita de estudos, casos, mapas e humildade. O resultado prático é um perfil que serve ao trabalho — um documento que propõe ações, testa hipóteses e aceita ser refutado.

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