Criminal

48 – Reincidência em Crimes Sexuais

Avaliar o risco de reincidência em crimes sexuais não é prometer adivinhação. Não existe profissional, instrumento ou perícia capaz de afirmar com cem por cento de certeza se alguém voltará a agredir

Reincidência em crimes sexuais – Avaliar o risco de reincidência em crimes sexuais não é prometer adivinhação. Não existe profissional, instrumento ou perícia capaz de afirmar com cem por cento de certeza se alguém voltará a agredir.

O máximo que a ciência oferece, quando bem utilizada, é uma estimativa informada de probabilidade, construída a partir de evidências, contexto e método. Essa distinção simples muda tudo: em vez de respostas binárias, o perito trabalha com gradações de risco; em vez de vaticínios, com hipóteses fundamentadas; em vez de rótulos, com descrições claras do que aumenta e do que reduz a chance de um novo delito.

A boa notícia é que a psicologia e a psiquiatria forense têm competência para conduzir esse tipo de avaliação. A má notícia é que, em muitas rotinas do sistema de justiça, ainda se pedem certezas impossíveis ou se tenta transformar a perícia em chave de decisão automática. O papel técnico é outro: oferecer ao juiz uma leitura qualificada do caso, deixando explícitos os limites do conhecimento e as condições que mudam a curva de risco.


O Que, De Fato, Se Avalia Quando Falamos Em Risco

Risco, aqui, não é uma essência que mora no indivíduo. É uma relação entre pessoa e contexto, que se altera no tempo. O laudo sério não pergunta apenas “quem ele é”, mas “como ele vive, com quem convive, sob quais contingências, com quais apoios, em quais cenários”.

A literatura internacional tem demonstrado, sistematicamente, que estimativas com melhor desempenho nas cortes combinam três camadas: a entrevista clínica e a análise documental feitas por profissionais treinados; a consideração explícita de fatores estáticos, que são marcadores de longo prazo; e a leitura de fatores dinâmicos, que se movem de acordo com rotina, tratamento e ambiente.

No debate acadêmico, o pesquisador R. Karl Hanson costuma ser citado como referência por organizar evidências e escalas com boa capacidade preditiva. A hierarquia de acurácia que esses estudos sugerem favorece medidas atuariais e avaliações estruturadas, seguidas de opiniões clínicas que, quando não se amparam em um protocolo, tendem a ser menos consistentes.

Isso não transforma uma escala em oráculo, mas indica que regrar o olhar produz mais qualidade do que improviso, por mais experiente que seja o avaliador.


Probabilidade, Condições e Cenários

A pergunta que chega ao perito, tantas vezes, é “essa pessoa é perigosa?”. Essa formulação, além de vaga, costuma ser impraticável. Mais honesto e útil é responder algo como: “dadas as características pessoais observadas, a história documentada e as condições atuais, o risco para este tipo específico de comportamento é mais baixo, moderado ou elevado”.

Em seguida, explica-se por quê, descrevendo quais elementos puxam a curva para cima e quais a empurram para baixo. Também se indicam as condições que, se alteradas, deveriam motivar reavaliação. Não se trata de recusar o trabalho, mas de traduzir a realidade de maneira compreensível e juridicamente aproveitável.

Essa forma de escrever protege contra dois perigos. O primeiro é o confinamento indefinido baseado em suposições disfarçadas de certeza. O segundo é a liberação precipitada por falta de um parâmetro técnico que diferencie quem, de fato, está com risco minimizado de quem segue exposto às mesmas contingências que antecederam o crime.


Métodos, Fontes e Cruzamentos

O caminho começa por uma entrevista clínica estruturada, que reconstrói a linha do tempo e busca episódios concretos, não apenas narrativas amplas. O perito observa linguagem, congruência afetiva, lacunas e contradições, mas resiste ao papel de inquisidor.

Em paralelo, destrincha-se documentação: processos, relatórios prisionais, prontuários, boletins de ocorrência, decisões anteriores, históricos de trabalho e estudo. A qualidade do laudo aumenta quando há checagens colaterais com familiares, parceiros, profissionais do sistema prisional, equipes de saúde e, quando eticamente apropriado e judicialmente autorizado, com a vítima ou representantes legais.

A coleta não se limita a palavras. Condutas observáveis durante o cumprimento de pena ou medida de segurança, adesão a rotinas, participação em atividades, incidentes disciplinares e respostas a intervenções formam um retrato concreto do estilo de vida.

Testes psicológicos podem ajudar, desde que usados com critério, como parte do quadro e nunca como peça única. Em contextos internacionais, medidas fisiológicas como a pletismografia peniana aparecem em protocolos; no Brasil, o uso é raro e, na prática, há escassez de recursos, padronização e validação local.


Fatores Estáticos e Fatores Dinâmicos

Fatores estáticos são dados que não mudam, ou o fazem muito lentamente. Entre eles, costumam pesar histórico de delitos, início precoce de comportamentos sexuais coercitivos, presença de vítimas que não pertencem ao círculo íntimo, preferências sexuais desviantes estabelecidas e perfil de relacionamentos afetivos instáveis. Esses marcadores, em análises de médio e longo prazo, estão associados a probabilidade maior de repetição do padrão.

Fatores dinâmicos são o coração do manejo. A situação atual de trabalho e renda, o uso de substâncias, a rede de apoio, o acesso a potenciais vítimas, a supervisão efetiva, a adesão a tratamento, a motivação para mudar, a estabilidade residencial e os estressores do cotidiano podem elevar ou reduzir o risco em questão de semanas ou meses. Como variam, precisam ser monitorados periodicamente. É por isso que laudos de risco, quando têm impacto sobre liberdade ou regime, pedem reavaliação em intervalos compatíveis com a velocidade dessas mudanças.


Quadros Que Influenciam o Comportamento

Em uma parcela dos casos, o crime sexual acontece na presença de condições clínicas que alteram julgamento, crítica e controle inibitório. Há pessoas com deficiência intelectual que se envolvem em condutas socialmente inadequadas por não compreenderem regras básicas do convívio, não por desejo de constranger alguém. Há pacientes em surto psicótico que, sem deliberação consciente típica, têm gestos invasivos dirigidos a familiares no ambiente doméstico.

Episódios maníacos podem somar sexualidade exacerbada, senso crítico rebaixado e impulsividade intensa. Há também relatos de agressões em contextos de turvação da consciência ou de quadros orgânicos cerebrais, especialmente em idosos com declínio cognitivo, em que filtros comportamentais antes eficientes deixam de funcionar.

Essas situações não transformam automaticamente qualquer ato em consequência direta do quadro, nem significam inimputabilidade sem exame. Elas pedem investigação cuidadosa de nexo e cronologia: quando o sintoma apareceu, como evoluiu, o que o precipitou, qual era o estado mental ao tempo do fato. No extremo oposto, transtornos de personalidade — entre eles traços psicopáticos ou antissociais, bem como narcisismo marcante — podem compor o pano de fundo de crimes planejados, nos quais o agressor entende o caráter ilícito e se autodetermina, ainda que com frieza afetiva.

Em todos os cenários, comorbidades com uso de álcool e outras drogas complicam o quadro e exigem distinções: efeito agudo da substância, alterações crônicas pela dependência, impulsos e preferências pré-existentes que a droga apenas desinibiu.


Preferências Sexuais, Parafilias
e o Lugar Das Palavras

Desejo, tendência ou fantasia de teor parafílico não é crime. O crime se estabelece quando há ato sem consentimento, com vítima vulnerável ou em situações tipificadas em lei. Para o perito, essa distinção é central. É preciso diferenciar preferências que o indivíduo consegue manter no plano da fantasia das que transbordam em conduta delituosa, entender se houve gestão bem-sucedida de impulsos em períodos anteriores e verificar se existem recursos internos e externos que sustentem o ajuste.

Quando parafilias se somam a traços de personalidade hostis e baixa responsividade a punições, o risco de repetição aumenta. Quando o sujeito reconhece padrões, adere a tratamento e vive em contextos protetivos, o cenário é outro.


Padrões De Repetição

Embora a grande maioria dos agressores sexuais não volte a cometer crime sexual em curto prazo após a soltura, há subgrupos com probabilidade maior. Estudos de seguimento, mesmo com subnotificação, sugerem que uma fração menor reincide em cinco anos e que esse percentual cresce em janelas mais longas.

Entre os que voltam a delinquir, há distinções relevantes: molestadores de crianças tendem a repetir delitos sexuais com maior frequência do que estupradores de mulheres adultas, enquanto estupradores apresentam maior propensão a reincidir em violência não sexual. Em ambos os perfis, um estilo de vida geral instável e antissocial parece pesar, o que joga luz sobre a importância de intervenções focadas em rotina, trabalho, vínculos e regulação emocional, e não apenas em conteúdo sexual.

Essas tendências não substituem a leitura do caso concreto. Idade, estado civil, histórico de relacionamentos, inserção social, adesão a tratamento e tempo de exposição a oportunidades de cometer o ato contam.

Também contam, e muito, as condições pós-cárcere: se a pessoa sai para um vácuo, sem supervisão, sem renda, com acesso irrestrito a potenciais vítimas e uso ativo de álcool, a equação piora. Se encontra uma rede minimamente organizada, a probabilidade se recalibra.


Tratamento, Supervisão
e o Que Funciona Na Prática

Não existe intervenção única que zere risco, mas há combinações que o reduzem. Programas cognitivo-comportamentais com foco em habilidades sociais, reestruturação de crenças, resolução de problemas e controle de impulsos têm resultados superiores quando inseridos em ambientes que reforçam condutas pró-sociais e aplicam consequências consistentes a violações.

O tratamento da dependência química, quando presente, é decisivo para reduzir recaídas. Supervisão comunitária que não seja apenas vigilância, e sim suporte com metas claras, melhora desfechos. O desenho de rotinas que minimizam exposição a gatilhos específicos, associado ao acompanhamento de humor, ansiedades e estresse, ajuda a prevenir janelas de risco.

O essencial é que o laudo aponte caminhos concretos, e não apenas carimbos. Se o avaliador conclui que a probabilidade atual é moderada, deve dizer o que precisa acontecer para cair para um patamar mais seguro: emprego com jornada definida, residência estável, participação regular em grupo terapêutico, restrição de contato com determinados públicos, abstinência sustentada de substâncias, comparecimento a consultas, revisão periódica do plano. Quando os requisitos são compreensíveis, o sistema de justiça consegue fiscalizar e a própria pessoa sabe o que se espera dela.


Ética, Linguagem e o Risco de Estigmatizar

Avaliar reincidência em crimes sexuais é uma das tarefas mais sensíveis da perícia. A linguagem escolhida pesa na vida de quem é avaliado, na proteção das potenciais vítimas e na confiança do público na justiça. Exageros adjetivos e rótulos definitivos servem ao sensacionalismo, não ao processo.

O documento técnico deve separar dado de inferência, citar fontes, reconhecer incertezas e evitar transformar estimativa em sentença. Também precisa lembrar, de forma explícita, que peritos não “descobrem a verdade” do fato: o exame não substitui prova material, não resolve controvérsias probatórias, não determina culpabilidade.

O que se entrega é uma análise da realidade psicológica do acusado, dos fatores que compõem seu risco e das condições que alteram essa curva.

Em situações com crianças e adolescentes, a responsabilidade aumenta. O objetivo primeiro é proteger a vítima e evitar revitimização. Técnicas de entrevista adequadas, sem indução, com respeito às fases do desenvolvimento e às orientações dos protocolos, são imprescindíveis. Laudos que projetam suposições ou transpõem fantasias sociais sobre sexualidade infantil para o caso concreto fazem mal a todos os envolvidos.


Carências, Criatividade e Rigor

No Brasil, a área de avaliação de risco de violência e reincidência sexual ainda dá passos iniciais em termos de sistematização. Faltam instrumentos validados nacionalmente, políticas públicas que padronizem rotinas mínimas, fluxos integrados entre justiça, saúde e assistência social. Em muitos lugares, a realidade é de equipes reduzidas, alta demanda e poucos recursos.

Mesmo assim, há muito que fazer com o que se tem. Entrevistas bem conduzidas, checagens colaterais, uso criterioso de escalas disponíveis, escrita responsável e reavaliações periódicas já elevam substancialmente a qualidade da decisão judicial.

Também cresce o interesse acadêmico por construir medidas e validar protocolos para o contexto local. É uma agenda urgente. Quanto mais a comunidade científica brasileira produzir conhecimento aplicável e formar profissionais em métodos estruturados, menos espaço haverá para improvisos e mais previsíveis serão os resultados.


Entre a Proteção Social e os Direitos Individuais

O dilema ético que atravessa a avaliação de risco é conhecido: como equilibrar a necessidade de proteger a sociedade com o dever de respeitar direitos e garantias individuais? O caminho está no método e na transparência. Quando o perito explica claramente por que atribui determinado patamar de risco, quais condições alterariam esse patamar e como esse risco se traduz em recomendações concretas, a decisão judicial pode ser firme sem ser arbitrária.

O confinamento deixa de ser “por via das dúvidas” para se tornar medida justificada. A liberdade deixa de ser “ato de fé” para ser processo monitorado. Em um campo com tantas paixões e temores, essa sobriedade é uma forma de justiça.


Menos Adivinhação, Mais Ciência Aplicável

Avaliar risco de reincidência em crimes sexuais exige humildade diante das incertezas e coragem para dizer o que é possível dizer. Não se prometem certezas. Entregam-se probabilidades fundamentadas, cenários condicionais e planos de manejo. Quando esse trabalho é bem feito, vítimas são melhor protegidas, inocentes não são esmagados por laudos descuidados e a sociedade se aproxima de decisões mais racionais. A psicologia e a psiquiatria forense têm muito a oferecer aqui, desde que mantenham o compromisso com evidências, linguagem clara e ética inegociável.

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