24 – Corrupção Da Inteligência Com Flávio Gordon
Flávio Gordon explica a “corrupção da inteligência”, analisa internet, Brexit, Trump, Bolsonaro e pandemia, relata censura e critica a falta de cultura política na direita brasileira

Antropólogo e colunista reflete sobre o vício de opinião que se interpõe entre nós e os fatos, revisita o período da pandemia como catalisador de um estado de exceção contínuo, relata episódios de censura e avalia por que a direita brasileira segue refém dos ciclos eleitorais.
Corrupção Da Inteligência
Conhecido pelo livro A Corrupção da Inteligência (2017) e por colunas na Gazeta do Povo e na Revista Oeste, o antropólogo Flávio Gordon se tornou uma voz de confronto a hábitos mentais que, segundo ele, deformam a relação do brasileiro com os fatos. – Clique aqui e compre o livro com desconto
A premissa é direta: antes de julgar, descreva. Antes de tomar partido, pergunte. E a pergunta inaugural — aquela que parece banal, mas raramente é feita — é: “o que é?”.
No centro do argumento está um diagnóstico incômodo. Em vez de encarar a realidade tal como se apresenta — mesmo quando ela contraria desejos, projetos ou alinhamentos — formamos um “arcabouço de ideias, slogans e vícios de linguagem” entre a consciência e o real. Essa blindagem intelectual antecipa julgamentos e dispensa a etapa descritiva.
Daí nasce, no vocabulário de Gordon, a corrupção da inteligência: uma patologia do pensamento que transforma opinião reflexa em regra e contato com os fatos em exceção.
A crítica tem endereço, mas não é partidária. Ela mira um modo de pensar — ou de não pensar — que se espalha em universidades, redações, partidos e redes sociais, sempre que se responde “é bom/ruim”, “é de direita/esquerda”, “é por isso/contra aquilo” antes de formular a pergunta básica: “do que estamos falando?”.
O Método Da Pergunta
e a Disciplina Da Descrição
Para Gordon, o remédio é anterior ao debate público: desmontar, em si, a engrenagem mental que impede o encontro com a realidade. Isso exige educação da atenção e disciplina descritiva. Não se trata de neutralidade afetada, mas de um hábito intelectual: aproximar-se de um fenômeno com a prioridade de caracterizá-lo — origem, natureza, contexto, limites — antes de convertê-lo em bandeira.
Esse procedimento é especialmente decisivo em temas complexos — política, sociedade, história — nos quais o “o que é?” não salta aos olhos e cobra esforço filosófico e histórico. Quando esse esforço é substituído por fórmulas ideológicas, ganha-se velocidade e perde-se precisão. O resultado é um debate que não debate: só reconhece a si mesmo.
Internet, Imprensa
e a Ruptura De Um Monopólio
O autor situa a virada recente no ecossistema de informação. Durante décadas, afirma, houve uma homogeneização crescente da imprensa tradicional: mesma pauta, mesma lente, mesmos vieses. A internet quebrou esse monopólio. Não por supostamente produzir “a verdade”, mas por abrir o mercado de opiniões.
A consequência política dessa abertura teria aparecido com nitidez entre 2016 e 2018. O Brexit contrariou projeções do establishment europeu; Donald Trump venceu nos EUA apesar da rejeição unânime de elites culturais e midiáticas; no Brasil, Jair Bolsonaro emergiu após anos de hegemonia simbólica da esquerda em cultura, educação e imprensa. Em comum, diz Gordon, uma reação civil de grupos que se sentiam sub-representados e passaram a disputar sentido e poder fora dos canais consagrados.
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O Contragolpe Das Elites
e a Retomada Do “Controle”
Se a internet redistribuiu voz, as elites buscaram recentralizá-la, argumenta o antropólogo. Uma parte desse movimento aparece em críticas à própria democracia (“se escolhe ‘errado’, talvez deva ser substituída por algo ‘mais competente’”) e em ataques aos meios da democratização, isto é, às plataformas abertas.
Segundo Gordon, toma forma uma “Internacional do Elitismo”: redes transnacionais de influência — do mundo financeiro, jurídico, acadêmico, filantrópico e de organismos multilaterais — articuladas para conter, reeducar ou deslegitimar as insurgências eleitorais dos anos anteriores.
O rótulo é irônico, mas o autor sustenta que não se trata de caricatura. É uma força política consciente, que se reconhece como elite, se comunica em conferências globais e age com coesão para reordenar o espaço público — inclusive litigando, legislando e policiando o discurso.
Pandemia e a Janela Política
A pandemia de 2020 entra nessa história como evento sanitário e oportunidade política. Gordon não nega o choque inicial. Mas vê no período um mecanismo clássico: a decretação de estado de emergência como forma de governo, com suspensão “temporária” de garantias constitucionais que, na prática, se prolongam. A exceção vira método.
A retórica conhecida — “pela vida”, “em nome da ciência”, “por um bem maior” — sustentou medidas que desautorizavam o dissenso e interditavam debates que são próprios da ciência: hipóteses rivais, revisões, autocrítica.
Médicos e pesquisadores críticos de políticas dominantes foram perseguidos; jornalistas e produtores independentes foram punidos; plataformas colaboraram com moderação assimétrica. O resultado foi uma hipertrofia do cientificismo: muitos que antes relativizavam a ciência passaram a brandi-la como autoridade moral — sem compromisso com sua prática real (contraposição de dados, revisão, discussão de incertezas).
Censura e o Processo Invisível
A crítica de Gordon não é apenas teórica. Em 2022, sua conta no Twitter foi suspensa por ordem judicial. Nem ele nem seu advogado conseguiram acessar o processo para conhecer a acusação. Houve informação de que o caso “não existia” nos sistemas consultados.
Meses depois, documentos trazidos à luz em discussões no Congresso dos EUA sobre moderação e cooperação entre plataformas e autoridades ajudaram a identificar o conteúdo usado contra ele: entre outras postagens, um editorial do The New York Times (2009) que questionava sistemas eleitorais integralmente eletrônicos. O jornalista havia simplesmente compartilhado o texto, sem comentário.
Gordon levou o caso ao Relator de Liberdade de Expressão da CIDH, em Brasília. Relatou a impossibilidade de defesa e a opacidade processual. Para ele, esse tipo de prática evidencia a erosão de garantias liberais — e o cerne do problema: o poder de decidir o que é “seguro” dizer passa a anteceder o exame do que foi dito.
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STF, Sentimentalismo
e a Política De Causas
Ao comentar o Supremo Tribunal Federal, Gordon concentra a crítica no ex-ministro Luís Roberto Barroso. Não por espetacularidade, mas por uma combinação perigosa de poder e sentimentalismo. A seu ver, o sentimentalista com poder acredita personificar a superioridade moral e agir em nome da história — o que reduz freios, autoriza abusos e naturaliza intervenções políticas fora do desenho constitucional.
No tema aborto, Gordon recorda um episódio em que Barroso — assumindo, por hipótese, a humanidade do feto — teria feito prevalecer a liberdade da mãe diante do direito à vida daquele em gestação: uma aritmética moral que o antropólogo considera barbárie travestida de racionalidade. O contraste entre a imagem pública humanista e a conclusão ética reforça, em sua leitura, o descolamento entre retórica e consequências.
Cancelamento Como Técnica De Controle
O cancelamento — nas redações, universidades e plataformas — aparece como ferramenta paralela. Desincentiva perguntas incômodas, torna custoso o dissenso e terceiriza a punição para marcas e empresas: a pessoa “custa caro”, logo é descartada. O efeito disciplinador é imediato. Em vez de debate, instala-se silêncio tenso. Em vez de exame, conformismo. A economia do medo substitui a economia de ideias.
O Erro Estratégico Da direita
e o Custo De Pensar Só Em Eleição
Quando instado a projetar rumos, Gordon é pouco otimista no curto prazo. Seu ponto não é encorajar derrotismo, mas nomear um erro: a nova direita brasileira teria permanecido refém dos ciclos eleitorais e sem cultura política consistente. Cultura política, aqui, não significa catecismo; significa um repertório histórico, simbólico e intelectual compartilhado que orienta reações automáticas a fatos — o que a esquerda, a seu ver, possui com naturalidade desde cedo, por socialização, símbolos e linguagem comuns.
Sem essa base, a direita improvisa. Reage ao calendário, mede tudo por viabilidade eleitoral, subestima disputas culturais e jurídicas, e perde o momento até quando o cenário externo é favorável — como nos episódios recentes de críticas internacionais à “juristocracia” no Brasil. Em vez de transformar janelas de oportunidade em agenda de reformas institucionais, prefere uma sobrevida tática que a mantém periférica.
Onde A Esperança Persiste
Mesmo crítico, Gordon vê trabalho nas bordas: canais independentes, jornalistas fora de redações tradicionais, iniciativas intelectuais e educativas crescendo graças à internet. Por isso, ele insiste: a liberdade da rede é uma luta prioritária. Sem ela, a pluralidade retrocede; com ela, há oxigênio para estudar, produzir e organizar comunidades de sentido — condição de base para reconstruir uma cultura política que não dependa de calendários.
Uma Proposta Mínima
Para Recomeçar o Debate Público
O conjunto das reflexões de Flávio Gordon não oferece uma fórmula; oferece um método mínimo:
- Perguntar antes de julgar.
A pressa do adjetivo — bom/ruim, meu/teu — empobrece. O primeiro serviço da inteligência é descrever.
– - Aceitar o risco do dissenso.
Ciência, imprensa e política crescem com conflito regulado, não com unanimidade fabricada. Divergência não é crime; é insumo.
– - Rejeitar o “estado de emergência permanente”.
Exceções não podem virar governo por decreto. A defesa de direitos exige rotina institucional e prestação de contas — inclusive de autoridades eleitorais.
– - Defender a internet aberta.
Não por ingenuidade, mas por diversidade de fontes e quebra de monopólios. Sem pluralidade no acesso à informação, o debate murcha.
– - Construir cultura política.
Estudar história das ideias, filosofia, direito, economia; partilhar símbolos e linguagem; formar reflexos saudáveis que resistam a modas e pressões.
Nada disso substitui reformas concretas; mas prepara as reformas para que não sejam capturadas pela próxima onda de exceção. A inteligência que se recusa à corrupção não promete conforto: promete adultos debatendo em público — com fatos, categorias claras e limites constitucionais que valem para todos.
Um Tempo Conturbado,
Sem Culto à Histeria
Ao revisitar 2016–2024, Gordon traça três linhas. A primeira é teórica: a denúncia de uma sofisticação do autoengano que se traveste de linguagem e repertório, mas foge do contato direto com o real.
A segunda é institucional: a constatação de que exceções se tornaram norma — e que parte do Judiciário assumiu protagonismo político sem o recato exigido por um tribunal de cúpula.
A terceira é prática: a vida das pessoas afetada por censura, apagamentos e sanções lato sensu, inclusive quando o “crime” é citar um editorial de jornal estrangeiro.
Não se trata de pintar um país sem saída. A conclusão de Gordon tem o tom do trabalho de formiguinha: estudar mais, descrever melhor, suportar o custo do dissenso e manter aberta a única praça realmente plural que nos resta — a internet. O resto é consequência.
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