Criminal

63 – Transtorno Voyeurista

O transtorno voyeurista é caracterizado pela excitação sexual ao observar pessoas nuas, se despindo ou em atividade sexual sem consentimento. Entenda seus critérios diagnósticos, fatores de risco, comorbidades, implicações legais e formas de tratamento sob a ótica da psicologia, psiquiatria e justiça forense

Transtorno Voyeurista – Entre os chamados transtornos parafílicos, o transtorno voyeurista se destaca por sua sutileza e frequência silenciosa. Diferente de crimes explícitos, ele se manifesta na observação não consentida de pessoas nuas, se despindo ou em atividade sexual, com a finalidade de obter excitação sexual. Em uma sociedade hiperexposta, onde a privacidade é frequentemente invadida por câmeras e telas, o voyeurismo se torna ainda mais complexo — um fenômeno que oscila entre o desejo, o impulso e o crime.

O voyeurista não busca necessariamente o contato físico. Sua satisfação está em observar sem ser visto, em experimentar o prazer pela imagem, pelo segredo e pela transgressão. A compulsão em assistir o outro sem consentimento revela um padrão de comportamento que ultrapassa o limite da curiosidade humana e se torna uma desordem clínica, com raízes profundas na psique e na história pessoal do indivíduo.


A Definição Clínica
Do Transtorno Voyeurista

De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5-TR), o transtorno voyeurista é definido pela excitação sexual recorrente e intensa ao observar pessoas que não sabem estar sendo observadas — especialmente quando estão nuas, se despindo ou envolvidas em atividades sexuais.

Essa excitação pode se manifestar de três formas: fantasias, impulsos ou comportamentos concretos. O indivíduo não precisa agir para que o transtorno se estabeleça; o simples desejo persistente e o sofrimento decorrente já caracterizam o quadro clínico.

O voyeurismo é, portanto, uma expressão parafílica da sexualidade humana — uma forma de prazer que se alimenta do segredo e da invasão do espaço íntimo do outro. A pessoa afetada sente um impulso quase incontrolável de observar e, muitas vezes, dedica tempo, energia e planejamento para concretizar esse ato, mesmo sabendo de suas consequências legais e morais.


Critérios Diagnósticos Segundo O DSM-5-TR

Para que o transtorno seja diagnosticado, o DSM-5-TR estabelece critérios claros:

Critério A: durante pelo menos seis meses, o indivíduo manifesta excitação sexual recorrente e intensa ao observar pessoas que não consentem, expressa por fantasias, impulsos ou comportamentos.

Critério B: o sujeito colocou esses impulsos em prática com alguém que não consentiu ou sofreu clinicamente por causa dessas fantasias, apresentando prejuízo no funcionamento social, profissional ou emocional.

Critério C: o indivíduo deve ter no mínimo 18 anos, justamente para diferenciar o transtorno das curiosidades típicas da adolescência, fase em que o despertar sexual e a exploração de estímulos visuais são comuns e não necessariamente patológicos.

A combinação dos critérios A e B indica o transtorno voyeurista propriamente dito. Quando apenas o critério A é atendido, o diagnóstico se limita à parafilia voyeurista, sem caracterizar necessariamente um distúrbio.


Entre A Fantasia E O Sofrimento

O voyeurista pode jamais ter agido fisicamente — e, ainda assim, sofrer intensamente com seus desejos. O simples fato de fantasiar repetidamente com situações de observação sem consentimento, aliado à vergonha, à ansiedade e ao medo de ser descoberto, pode gerar sofrimento emocional significativo.

Essa condição cria um paradoxo psicológico: o prazer e a culpa coexistem, impulsionando o ciclo obsessivo. O sujeito se sente dominado por um impulso que, ao mesmo tempo que o satisfaz, o destrói. Em muitos casos, esse sofrimento se intensifica com o isolamento social e com a dificuldade de procurar ajuda profissional, por medo de julgamento.


A Idade E O Desenvolvimento Do Desejo

O transtorno voyeurista geralmente emerge na adolescência, quando o indivíduo começa a explorar sua sexualidade. Para alguns, observar secretamente alguém se despindo ou em ato sexual é uma experiência que desperta uma sensação intensa de poder e prazer.

Essa fase pode marcar o início de um padrão que se perpetua na vida adulta, consolidando-se como uma forma preferencial de excitação sexual. Porém, é essencial diferenciar o comportamento natural da curiosidade adolescente do voyeurismo patológico.

Antes dos 18 anos, não se pode diagnosticar o transtorno, justamente porque o comportamento pode estar inserido em um processo de descoberta sexual saudável. A avaliação deve levar em conta o contexto cultural, o grau de compulsão e o sofrimento envolvido.


O Observador Que
Não Quer Ser Visto

O voyeurista vive da tensão entre o desejo e o segredo. Ele sente prazer em observar o outro sem ser percebido, em participar de uma cena da qual é espectador oculto.

Diferentemente do exibicionista, que busca o olhar alheio, o voyeurista deseja ver sem ser visto. É o prazer da invisibilidade, da posse simbólica do outro através do olhar.

Essa dinâmica pode ser impulsionada por sentimentos de inadequação, insegurança ou impotência sexual. O voyeurismo, nesse sentido, representa uma tentativa de obter prazer sem se expor emocionalmente, uma forma de controle que mascara a fragilidade psíquica.


Os Especificadores:
Entre O Controle E A Remissão

O DSM-5-TR propõe dois especificadores para o transtorno voyeurista:

  • Em ambiente protegido: aplicado a indivíduos institucionalizados, como presos ou internados, que não têm oportunidade de agir sobre seus impulsos.
  • Em remissão completa: quando o indivíduo não manifesta comportamentos ou prejuízos clínicos por pelo menos cinco anos em ambiente não protegido.

A remissão, contudo, não significa cura. O sujeito pode deixar de agir, mas os impulsos e desejos persistem, mesmo que sem sofrimento. A ausência de comportamento não elimina a presença do transtorno.


A Frequente Negação
Do Comportamento

Assim como em outros transtornos parafílicos, o voyeurista muitas vezes nega suas fantasias e comportamentos. Quando flagrado, tende a justificar o ato como “acidental” ou “mal interpretado”.

Essa negação é uma forma de defesa psíquica e social, mas também dificulta o diagnóstico e o tratamento. A vergonha e o medo de represálias fazem com que muitos vivam em silêncio, escondendo um sofrimento que cresce à medida que o comportamento se repete.

Em investigações forenses, é comum ouvir justificativas como “eu estava apenas passando”, “foi coincidência”, ou “achei que ela sabia”. Essas desculpas refletem a tentativa de racionalizar um impulso incontrolável e de reduzir sua gravidade moral.


A Prevalência Do Transtorno

Os estudos indicam que o transtorno voyeurista é mais comum em homens do que em mulheres, numa proporção aproximada de 12 para 4. No entanto, os números são imprecisos, pois muitos casos não são denunciados nem identificados clinicamente.

A prevalência entre homens é explicada, em parte, por fatores socioculturais e pelo maior número de denúncias contra eles, enquanto o voyeurismo feminino é frequentemente ignorado, subestimado ou até romantizado.

Em ambientes clínicos, é comum encontrar o transtorno voyeurista associado a outros distúrbios sexuais, como o exibicionismo, o frotteurismo e a hipersexualidade, o que reforça o caráter compulsivo e complexo desse tipo de comportamento.


Fatores De Risco E Prognóstico

O voyeurismo pode surgir a partir de uma combinação de fatores temperamentais, ambientais e neurológicos.

Entre os fatores temperamentais, destacam-se traços antissociais, impulsividade e dificuldade em lidar com frustrações. Já nos fatores ambientais, o abuso sexual na infância, o abuso de substâncias e o ambiente hipersexualizado são apontados como elementos de risco.

Embora a relação causal entre essas variáveis e o transtorno não esteja totalmente esclarecida, observa-se que muitos indivíduos com voyeurismo apresentam histórico de traumas ou negligência emocional.

O prognóstico depende da adesão ao tratamento e da capacidade do indivíduo de desenvolver autocontrole e consciência moral. Quando não tratado, o transtorno pode evoluir para comportamentos criminosos e para o agravamento de comorbidades associadas, como ansiedade e depressão.


A Questão De Gênero
E A Subnotificação Feminina

O voyeurismo é frequentemente retratado como um comportamento masculino, mas mulheres também podem apresentar o transtorno. O problema é que, dentro da cultura machista, a percepção sobre o ato varia conforme o gênero.

Uma mulher que observa um homem nu pode ser vista como “curiosa” ou “atrevida”, enquanto o homem voyeurista é rapidamente rotulado como criminoso. Essa diferença de julgamento gera subnotificação e dificulta o estudo da real prevalência entre os sexos.

Além disso, muitos homens vítimas de voyeurismo feminino não denunciam, seja por vergonha, seja por acreditarem que não serão levados a sério. Assim, o fenômeno permanece distorcido e incompleto nos dados clínicos e criminais.


As Comorbidades: Quando
O Voyeurismo Não Vem Sozinho

O transtorno voyeurista raramente se manifesta de forma isolada. Ele costuma estar associado a outros transtornos parafílicos, como o exibicionismo, o frotteurismo e o transtorno de conduta.

Além disso, há uma forte correlação com transtornos de humor (depressivo e bipolar), transtornos de ansiedade, TDAH, hipersexualidade e transtorno de personalidade antissocial.

Essas comorbidades reforçam a necessidade de uma avaliação clínica abrangente, que leve em conta todo o histórico emocional, comportamental e familiar do paciente, evitando diagnósticos superficiais ou reducionistas.


O Transtorno Voyeurista
No Contexto Forense

No campo jurídico, o voyeurismo pode configurar crime de importunação sexual ou violação de privacidade, dependendo da legislação e da gravidade do caso. No Brasil, a Lei nº 13.718/2018 criminaliza expressamente a captação ou divulgação de imagens íntimas sem consentimento, incluindo gravações feitas por voyeuristas.

O perito psicológico tem papel fundamental ao avaliar a capacidade de discernimento do indivíduo. Se comprovado que o comportamento foi resultado de um impulso incontrolável e de um transtorno mental, o réu pode ser considerado semi-imputável ou inimputável, sendo submetido a medida de segurança em vez de pena comum.


Tratamento E Intervenção

O tratamento do transtorno voyeurista é desafiador, pois envolve fantasias enraizadas e padrões de comportamento persistentes. A terapia cognitivo-comportamental (TCC) é uma das abordagens mais eficazes, pois trabalha a reestruturação das crenças disfuncionais e o controle dos impulsos.

Em alguns casos, são utilizados inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS) para reduzir a libido e a impulsividade sexual. Em situações mais graves, pode-se recorrer a tratamentos hormonais que diminuem o desejo sexual.

O sucesso terapêutico depende da disposição do paciente em reconhecer o problema e se engajar no processo terapêutico. Quando o tratamento é imposto judicialmente, a taxa de recaída tende a ser maior.


O Olhar Que Rompe
A Linha Do Consentimento

O transtorno voyeurista representa a invasão da intimidade alheia travestida de prazer visual. É o olhar que ultrapassa o limite do respeito e transforma o desejo em violação.

Em uma era de câmeras ocultas, redes sociais e exposição digital, o voyeurismo assume novas formas — mais tecnológicas, mas igualmente devastadoras.

Compreender o transtorno é essencial não apenas para o campo clínico, mas também para a justiça e para a sociedade. Ele nos obriga a refletir sobre os limites entre curiosidade, desejo e crime, e sobre a importância do consentimento como pilar da dignidade humana.

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