Crimes

25 – O Cão de Zardad – Abdullah Shah

Abdullah Shah, o temido “Cão de Zardad”, transformou a guerra civil afegã em um reinado de terror. Conheça a história real do soldado que se tornou um símbolo da brutalidade e do poder sem limites

O Cão de Zardad – Em meio ao caos e à anarquia que consumiram o Afeganistão durante a guerra civil do início dos anos 1990, a linha entre soldado, criminoso e monstro se desfez completamente. Em um cenário onde a brutalidade era a moeda corrente e a vida humana tinha pouco valor, emergiram figuras cuja crueldade se destacou até mesmo nos padrões de um conflito sangrento.

Abdullah Shah, conhecido pelo apelido aterrador de “O Cão de Zardad”, foi uma dessas figuras. Ele não era um assassino em série que se escondia nas sombras da sociedade; ele era um predador que operava à vista de todos, investido com o poder de uma milícia e protegido pela impunidade de um estado em colapso. Sua história é um estudo de caso visceral sobre a intersecção da psicopatologia individual com a patologia de uma nação em guerra.

Acusado de mais de 20 assassinatos, incluindo o de várias de suas próprias esposas, e suspeito de centenas de outros, Shah personificou o horror de uma era em que a lei da selva reinava suprema. Este artigo examina a vida e os crimes de Abdullah Shah, aplicando as lentes da psicologia, da psiquiatria e da neurociência para analisar como um homem se tornou um instrumento de terror e o que seu caso revela sobre a natureza da violência em condições de colapso social.


O Afeganistão no Pós-Guerra Fria

Para compreender a figura de Abdullah Shah, é imperativo primeiro entender o ambiente que o forjou. O Afeganistão do início dos anos 1990 não era um país, mas um mosaico fraturado de feudos controlados por senhores da guerra. Após a retirada das forças soviéticas em 1989 e a subsequente queda do governo comunista em 1992, as facções de mujahideen que haviam lutado juntas contra um inimigo comum se voltaram umas contra as outras em uma luta devastadora pelo controle de Cabul e do país.

A capital, que já fora um centro de relativa modernidade, tornou-se um campo de batalha apocalíptico, bombardeada até a submissão pelas mesmas forças que a haviam “libertado”.

Nesse vácuo de poder, a lei e a ordem evaporaram. Comandantes de milícias, antes aclamados como heróis da resistência, tornaram-se tiranos locais, governando seus territórios com punho de ferro. A estrada que ligava Cabul a Jalalabad, uma artéria vital para o comércio e o transporte, transformou-se em um corredor de banditismo e terror. Postos de controle, operados por homens armados leais a vários comandantes, surgiram como portões de pedágio para a extorsão, o sequestro e o assassinato.

Foi nesse ambiente de impunidade absoluta que Abdullah Shah prosperou. Ele era um soldado sob o comando de Zardad Khan, um notório comandante da facção Hezb-e-Islami, liderada pelo infame senhor da guerra Gulbuddin Hekmatyar. O grupo de Hekmatyar era conhecido por sua brutalidade excepcional, mesmo para os padrões da época, e Zardad, junto com seu subordinado Shah, personificava essa crueldade na estrada para Jalalabad.

O estado não existia para proteger os cidadãos; existia apenas o poder da arma. Para os viajantes, cada posto de controle era uma roleta russa, e encontrar Abdullah Shah era quase sempre uma sentença de morte ou de sofrimento indizível.


Violência Pública e Sadismo

Abdullah Shah não era apenas um soldado extorquindo dinheiro; ele era um predador que se deleitava com o sofrimento de suas vítimas. Alto, musculoso e possuído por uma fúria explosiva, ele transformou seu posto de controle em um teatro pessoal de sadismo. Testemunhas e promotores mais tarde descreveriam um padrão consistente de comportamento.

Shah e seus homens exigiam quantias exorbitantes de dinheiro de caminhões e ônibus que passavam. Quando os motoristas se recusavam ou não podiam pagar, a violência de Shah era imediata e desproporcional.

Ele não apenas batia ou atirava em suas vítimas. Seu método de ataque era distintamente animalesco, o que lhe rendeu o apelido de “O Cão de Zardad”. Ele saltava sobre os motoristas e passageiros, atacando-os com uma ferocidade canina, mordendo-os no rosto, no pescoço e nos membros.

Este ato de morder vai além da simples agressão; é um ato de profunda desumanização. Ao morder suas vítimas, Shah as reduzia a meros objetos, pedaços de carne a serem rasgados. Psicologicamente, este comportamento sugere uma regressão a um estado primitivo de agressão, uma rejeição completa de qualquer norma de combate ou interação humana.

Ele não via suas vítimas como pessoas, mas como presas. Seu apelido não era apenas uma descrição de sua lealdade a Zardad, mas uma descrição literal de seu comportamento.

Sua crueldade não se limitava a mordidas. Relatos de sua carreira criminosa incluem o sequestro de aldeões para resgate, o incêndio de um ônibus cheio de famílias de refugiados e o descarte casual dos corpos de suas vítimas em poços, como se fossem lixo.

A estrada sob seu controle era seu domínio privado, e todos que a cruzavam estavam sujeitos aos seus caprichos violentos. Ele era a personificação do poder absoluto sem qualquer restrição, um homem cujos piores impulsos foram não apenas permitidos, mas incentivados pelo ambiente de guerra.


A Tortura das Esposas

Se a violência pública de Abdullah Shah era chocante, seus atos privados revelam uma profundidade de depravação ainda maior. Longe do posto de controle, dentro das paredes de sua casa, ele era um tirano doméstico em série, cuja crueldade era reservada para as mulheres que ele tomava como esposas. Ele se casou pelo menos cinco vezes, e para três de suas esposas, o casamento foi uma sentença de morte. Para as que sobreviveram, foi uma provação de tortura sistemática.

O testemunho mais detalhado veio de sua quarta esposa, Sohaila, uma mulher de 30 anos cujas cicatrizes físicas e emocionais contavam a história de seu cativeiro. Ela se casou com Shah depois que seu primeiro marido morreu. Ele a cortejou com a promessa de uma vida melhor, comprando-lhe um vestido de noiva exótico. A fachada de normalidade durou apenas um dia. No dia seguinte ao casamento, os espancamentos começaram.

Sohaila descreveu como Shah a manteve trancada em um quarto por meses, submetendo-a a espancamentos diários com barras de metal. Seus pés e dedos dos pés ficaram permanentemente deformados pela violência. Em um ato de sadismo calculado, ele derramou água fervente sobre seu estômago e coxas, deixando-a com cicatrizes roxas que ela carregaria para sempre. Ela só conseguiu escapar quando ele, em um raro lapso de controle, a enviou a Cabul para realizar uma tarefa.

O caso de Sohaila não foi isolado. Shah tentou atear fogo a outra de suas esposas. Foi a fuga de sua quinta esposa, em maio de 2002, que finalmente levou à sua queda. Aterrorizada, ela correu para uma delegacia de polícia em Cabul, alegando que Shah estava tentando matá-la. Com o regime do Taliban derrubado e um novo governo tentando estabelecer uma aparência de ordem, as autoridades finalmente agiram. A prisão de Abdullah Shah marcou o fim de um reinado de terror que durou mais de uma década, abrangendo tanto a esfera pública quanto a privada.


Julgamento, Execução e a Justiça

O julgamento de Abdullah Shah, realizado em outubro de 2002, foi um momento crucial para o sistema de justiça nascente do Afeganistão pós-Taliban. Nove testemunhas, incluindo a corajosa Sohaila, depuseram contra ele. Os corpos de muitas de suas vítimas foram recuperados de um poço no distrito de Paghman, fornecendo provas físicas para os testemunhos. Shah, confrontado com suas vítimas e as evidências de seus crimes, negou tudo. Quando Sohaila testemunhou, ele friamente afirmou que não a conhecia.

Apesar de suas negações, ele foi condenado por pelo menos 20 assassinatos e sentenciado à morte. Em 20 de abril de 2004, na notória prisão de Pul-e-Charkhi, Abdullah Shah foi executado com um tiro na nuca. A execução, a primeira sancionada pelo novo governo afegão e assinada pelo presidente interino Hamid Karzai, foi saudada por muitos como um sinal de que a era da impunidade havia acabado.

No entanto, o caso não foi isento de controvérsias. A Anistia Internacional protestou contra a execução, levantando sérias preocupações sobre a equidade do processo. A organização alegou que o julgamento de Shah não atendeu aos padrões internacionais de justiça. Ele não teve acesso a um advogado de defesa, o julgamento foi realizado em segredo e sua confissão foi supostamente obtida sob tortura.

Além disso, o primeiro juiz do caso foi demitido por aceitar um suborno, e o segundo juiz teria sofrido pressão da Suprema Corte para impor a pena de morte. A Anistia Internacional levantou a possibilidade de que Shah estivesse sendo silenciado para impedi-lo de testemunhar contra outros comandantes de milícias, muitos dos quais haviam se tornado figuras influentes no novo governo. A execução de Abdullah Shah, embora o fim de um monstro, deixou uma questão desconfortável: foi um ato de justiça ou uma limpeza política conveniente?


Perfil Psicológico

Abdullah Shah não se encaixa no molde do assassino em série psicopata clássico, como um Ted Bundy, que usa charme e manipulação para se infiltrar na sociedade. Shah era um produto diferente, um monstro forjado no crisol da guerra. Seu perfil psicológico é o de um indivíduo com traços antissociais e sádicos preexistentes, cujos impulsos foram radicalmente desinibidos e amplificados por um ambiente de violência sancionada e anarquia.

  • Sadismo Explosivo: A característica mais proeminente de Shah era seu sadismo. O ato de morder suas vítimas, a tortura prolongada de suas esposas com água fervente e barras de metal, e o incêndio de um ônibus de refugiados não são atos de violência instrumental (violência usada para atingir um objetivo, como dinheiro). São atos de violência expressiva, onde o próprio ato de infligir dor e sofrimento é a principal fonte de gratificação. Ele claramente obtinha prazer com o terror e a agonia de suas vítimas.
  • Controle e Dominação: Tanto em seus crimes públicos quanto privados, o tema central era o controle absoluto. No posto de controle, ele era o senhor da vida e da morte. Em casa, ele transformava suas esposas em prisioneiras, objetos para sua violência. O casamento, para ele, não era uma parceria, mas a aquisição de uma nova vítima sobre a qual ele poderia exercer um poder ilimitado.
  • Ausência de Empatia e Desumanização: Shah demonstrava uma incapacidade total de reconhecer a humanidade de suas vítimas. Elas eram meros instrumentos para sua gratificação. A guerra civil provavelmente exacerbou essa tendência. Em um conflito onde os inimigos são rotineiramente desumanizados para facilitar o ato de matar, Shah simplesmente aplicou essa mentalidade a todos ao seu redor. Seu apelido, “O Cão de Zardad”, é revelador. Ele pode ter sido visto por seus superiores como um animal de ataque, e ele abraçou essa identidade, agindo com uma brutalidade que transcendia a maldade humana e entrava no reino do animalesco.
  • Impulsividade e Baixo Controle Emocional: Ao contrário de um assassino organizado que planeja meticulosamente seus crimes, Shah parecia operar com base em impulsos explosivos. Sua reação à recusa de pagamento era uma fúria imediata e descontrolada. Essa falta de controle de impulsos é uma característica chave de muitos transtornos de personalidade violentos.

A Neurobiologia da Brutalidade
em Tempos de Guerra

A neurociência pode oferecer um modelo para entender como um cérebro como o de Abdullah Shah pode ter funcionado. A exposição crônica à violência e ao trauma da guerra não apenas afeta a mente; ela pode reconfigurar fisicamente o cérebro, reforçando os circuitos de agressão e embotando os de empatia.

O cérebro humano é equipado com um sistema de resposta a ameaças centrado na amígdala, uma estrutura que detecta perigos e desencadeia a resposta de “luta ou fuga”. Em um ambiente de guerra, este sistema está em alerta máximo constante. A exposição prolongada a situações de perigo de vida pode levar a uma amígdala cronicamente hiperativa. Ao mesmo tempo, o córtex pré-frontal, a região responsável pelo raciocínio, controle de impulsos e tomada de decisões morais, pode se tornar hipoativo ou “desligado”.

Em uma situação de sobrevivência, o pensamento deliberado é muito lento; as reações instintivas da amígdala assumem o controle. Para um soldado em combate, isso é adaptativo. Para Abdullah Shah, que viveu nesse estado por anos, essa pode ter se tornado sua configuração cerebral padrão: reações agressivas e impulsivas com pouca ou nenhuma modulação do córtex pré-frontal. O “freio” moral e racional de seu cérebro foi efetivamente cortado.

Além disso, o sadismo de Shah pode ser explicado por uma fiação cruzada nos centros de prazer e dor do cérebro. Como discutido em casos de sadismo sexual, a observação do sofrimento alheio pode ativar anormalmente o sistema de recompensa do cérebro, incluindo o estriado ventral. Para Shah, o ato de morder, espancar ou queimar pode ter liberado uma onda de dopamina, o neurotransmissor do prazer, criando um ciclo vicioso de dependência da violência. Cada ato de crueldade reforçava essa via neural, tornando-o cada vez mais dependente de atos extremos para alcançar a mesma sensação de poder e gratificação.

O comportamento de morder, em particular, é uma forma de agressão primária, vista em animais e crianças muito pequenas, mas raramente em adultos. Sua reaparição em Shah sugere uma regressão neurológica a padrões de comportamento mais primitivos, possivelmente devido à falha das vias de controle cortical superior. Em essência, o ambiente de anarquia permitiu que a parte mais primitiva e agressiva de seu cérebro dominasse completamente seu comportamento.


Perfilamento Criminal:
O Predador Oportunista

Abdullah Shah desafia uma categorização simples. Ele não era apenas um assassino em série, nem apenas um criminoso de guerra. Ele era uma fusão de ambos, um predador oportunista que usou o caos da guerra como seu escudo e sua arma.

  • Tipo de Assassino: Ele se encaixa no perfil de um assassino por poder/controle com fortes traços sádicos. Sua principal motivação não era sexual no sentido clássico, mas a obtenção de um sentimento de onipotência através da dominação total e da aniquilação de suas vítimas. A gratificação vinha do exercício do poder absoluto sobre a vida e a morte.
  • Geograficamente Estável: Ao contrário de muitos assassinos em série que viajam, Shah era geograficamente estável. Ele usou sua posição fixa no posto de controle como uma teia de aranha, esperando que as vítimas viessem até ele. Isso o torna um “caçador de emboscada”.
  • Vitimização Dupla: Uma característica distintiva de seu perfil é a clara divisão entre suas vítimas públicas (viajantes) e privadas (esposas). Isso demonstra sua capacidade de compartimentalizar sua violência, aplicando-a em diferentes domínios de sua vida com a mesma intensidade sádica. A violência não era apenas seu “trabalho”; era seu modo de vida.
  • Contexto como Fator Criminogênico: O fator mais importante em seu perfil é o contexto. Sem a guerra civil, é improvável que Abdullah Shah tivesse a oportunidade de matar em uma escala tão vasta. Ele poderia ter sido um criminoso violento, um agressor doméstico, mas a guerra lhe deu recursos (armas, homens), oportunidade (fluxo constante de vítimas) e, o mais importante, impunidade. Ele é um exemplo extremo de como o ambiente pode permitir que uma patologia individual floresça em uma atrocidade em massa.

A Anatomia de um Monstro de Guerra

Abdullah Shah, o “Cão de Zardad”, foi mais do que um assassino em série. Ele foi um sintoma de uma nação em colapso, um homem cujas piores tendências foram liberadas e amplificadas por um ambiente de anarquia total.

Sua história ilustra uma verdade desconfortável sobre a natureza humana: as estruturas da lei, da ordem e da moralidade social são, para alguns indivíduos, as únicas barreiras que contêm uma capacidade para uma violência inimaginável. Quando essas barreiras desmoronam, como aconteceu no Afeganistão, os monstros que vivem entre nós são libertados.

Ele era um predador que encontrou seu ecossistema perfeito no caos. Sua execução pode ter trazido um fim ao seu reinado de terror, mas as questões que seu caso levanta sobre justiça, violência e a fragilidade da civilização continuam a ecoar. Abdullah Shah é um registro permanente do que pode emergir quando o verniz da sociedade é arrancado e a natureza humana é deixada a seus próprios dispositivos mais primitivos.


Referências

George, D. T., et al. “Regional brain activity in healthy and violent subjects during a visual attention task.” Journal of Neuropsychiatry and Clinical Neurosciences, 2004.

Wikipedia. “Abdullah Shah.” Acessado em 26 de outubro de 2025. https://en.wikipedia.org/wiki/Abdullah_Shah

The Washington Post. “Conviction of a Brutal Killer Leaves Afghan Justice on Trial.” Acessado em 26 de outubro de 2025. https://www.washingtonpost.com/archive/politics/2002/10/23/conviction-of-a-brutal-killer-leaves-afghan-justice-on-trial/

BBC News. “Former Afghan commander executed.” Acessado em 26 de outubro de 2025. http://news.bbc.co.uk/2/hi/south_asia/3664293.stm

Schafran, L. H. “Domestic violence, developing brains, and the lifespan: new knowledge from neuroscience.” The Judges’ Journal, 2014.

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