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21 – Casamento Infantil – Números Assustam no Brasil

O casamento infantil ainda aprisiona milhares de meninas no Brasil em ciclos de pobreza, abuso e silêncio. Este relatório revela as causas, consequências e urgência de romper uma das mais cruéis violações de direitos humanos da nossa era

Casamento Infantil – Este relatório apresenta uma análise sobre o fenômeno do casamento e das uniões conjugais envolvendo crianças e adolescentes no Brasil, utilizando como ponto de partida os dados alarmantes do Censo Demográfico 2022.

A investigação revela que a persistência desta prática, que afeta 34.202 indivíduos entre 10 e 14 anos, é sustentada por uma complexa e resiliente teia de fatores estruturais, incluindo pobreza persistente, desigualdade de gênero arraigada, e normas culturais que não apenas toleram, mas naturalizam a união precoce.

O documento disseca as dinâmicas regionais, os mecanismos psicossociais subjacentes, e as interconexões que formam ciclos viciosos de vulnerabilidade, transmitidos através de gerações. A análise detalha como a evasão escolar, a gravidez na adolescência, a violência doméstica e a falta de autonomia econômica atuam simultaneamente como causas e consequências, aprisionando meninas em um ciclo de desvantagens.


Uma Crise Silenciosa

A divulgação dos dados do Censo Demográfico 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) lançou uma luz incômoda sobre uma das mais persistentes e silenciosas violações de direitos humanos no país: a existência de 34.202 crianças e adolescentes de 10 a 14 anos vivendo em união conjugal [1].

Este número, embora possa parecer uma fração diminuta diante da população total brasileira, representa 34.202 infâncias interrompidas, 34.202 futuros comprometidos e uma falha coletiva do Estado e da sociedade em proteger seus membros mais vulneráveis. A gravidade da situação é amplificada pela Lei nº 13.811, de 2019, que proíbe categoricamente o casamento de menores de 16 anos em qualquer circunstância [2]. A distância entre a letra da lei e a realidade vivida por milhares de crianças expõe um “nó cego” na estrutura social brasileira, onde práticas danosas continuam a prosperar à sombra da informalidade e da aceitação cultural.

O fenômeno, longe de ser algo raro, revela contornos bem definidos e profundamente preocupantes. Trata-se de uma crise com um rosto predominantemente feminino, com meninas compondo 77% dos casos. É uma crise que se esconde na informalidade, com 86,6% das uniões sendo consensuais, ou seja, sem qualquer registro oficial que confira direitos ou proteções. E é uma crise com geografia, concentrando-se desproporcionalmente em regiões de maior vulnerabilidade social, como o Nordeste, embora se faça presente em todo o território nacional.

Este relatório propõe-se a ir além da superfície dos dados para desvendar a complexa arquitetura que sustenta o casamento infantil no Brasil. O objetivo é dissecar a teia de fatores — econômicos, sociais, culturais e psicológicos — que não apenas causam, mas perpetuam esta prática. Partindo de uma revisão detalhada de estudos acadêmicos, relatórios de organizações como o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e a Plan International, e pesquisas de campo aprofundadas, como a do Instituto Promundo, esta análise examinará as causas interconectadas, as consequências devastadoras em cascata e as implicações para a formulação de políticas públicas que sejam, de fato, eficazes.

Compreender por que uma menina de 12 anos no interior do Maranhão ou na periferia de São Paulo passa a viver com um homem mais velho não é apenas um exercício acadêmico; é um passo fundamental para desatar este nó e garantir que o direito a uma infância plena e segura seja uma realidade para todas as crianças brasileiras.


O Retrato Quantitativo da Crise:
Uma Leitura Crítica dos Dados do Censo 2022

Os dados do Censo 2022 são a base empírica mais sólida para dimensionar o problema. Uma análise crítica desses números permite não apenas quantificar, mas também qualificar a natureza do casamento infantil no Brasil.

CaracterísticaDados Nacionais (10 a 14 anos)Percentual
Total em União Conjugal34.202100%
Meninas26.39977,2%
Meninos7.80322,8%

Tabela 1: Distribuição por Gênero da União Conjugal (10-14 anos). Fonte: IBGE, Censo 2022 [1].

A esmagadora disparidade de gênero (77,2% de meninas) é o primeiro e mais contundente indicador de que o casamento infantil é um fenômeno intrinsecamente ligado à desigualdade de gênero. Ele não afeta meninos e meninas da mesma forma. Para as meninas, a união precoce está frequentemente associada ao início da vida sexual, à maternidade e à assunção de papéis domésticos. Para os poucos meninos envolvidos, a dinâmica pode ser diferente, mas a violação de seus direitos ao desenvolvimento e à educação permanece.

Tipo de UniãoNúmero de IndivíduosPercentual
União Consensual29.60086,6%
Casamento Civil e Religioso2.3006,7%
Apenas Casamento Civil1.6004,7%
Apenas Casamento Religioso5221,5%

Tabela 2: Distribuição por Natureza da União (10-14 anos). Fonte: IBGE, Censo 2022 [1].

A predominância avassaladora das uniões consensuais (86,6%) é um ponto-chave. Este dado revela que a maior parte do problema ocorre fora do alcance direto da legislação que proíbe o casamento formal. A informalidade cria uma zona cinzenta onde a prática é socialmente aceita, mas legalmente inexistente. Isso torna as meninas particularmente vulneráveis, pois, sem o reconhecimento legal da união, elas ficam desprovidas de direitos patrimoniais, previdenciários ou de herança em caso de separação ou morte do parceiro. A união consensual, neste contexto, funciona como um mecanismo que maximiza o controle sobre a menina enquanto minimiza as responsabilidades legais do parceiro.

Geograficamente, a análise dos dados revela uma dupla realidade. A Região Nordeste concentra mais de 13 mil casos, o que corresponde a aproximadamente 38% do total nacional [7]. Esta concentração está diretamente ligada aos indicadores de desenvolvimento humano mais baixos da região, maiores taxas de pobreza e normas culturais tradicionalmente mais rígidas. Estados como Bahia e Paraíba figuram entre os mais afetados.

Contudo, olhar apenas para a prevalência pode mascarar a magnitude do problema em outras áreas. Em números absolutos, o estado de São Paulo, o mais rico da federação, lidera com 4.722 casos. Isso demonstra que o casamento infantil não é um problema restrito a áreas rurais ou “atrasadas”, mas um fenômeno nacional que se manifesta de formas diferentes em contextos distintos, presente também nas periferias das grandes metrópoles, onde a pobreza e a violência urbana criam um terreno fértil para sua ocorrência.


A Arquitetura da Vulnerabilidade

O casamento infantil não pode ser atribuído a uma única causa. Ele é o resultado de uma confluência de fatores que se entrelaçam, criando uma “tempestade perfeita” de vulnerabilidade. As pesquisas analisadas [3, 4, 5, 6] permitem agrupar esses fatores em categorias inter-relacionadas.

O Alicerce da Pobreza e da Desigualdade Econômica

A pobreza é, consistentemente, o fator mais citado e o alicerce sobre o qual as outras vulnerabilidades se constroem. Para famílias em situação de extrema precariedade, o casamento de uma filha pode ser percebido, tragicamente, como uma estratégia racional de sobrevivência. A organização Girls Not Brides aponta que meninas de famílias com menor condição econômica têm três vezes mais chances de casar antes dos 18 anos [4]. A união pode significar uma boca a menos para alimentar, a possibilidade de uma aliança econômica com outra família ou a esperança de que a filha tenha acesso a um padrão de vida melhor.

A pesquisa qualitativa do Instituto Promundo [6] oferece um olhar profundo sobre essa dinâmica. Em suas entrevistas no Pará e no Maranhão, os pesquisadores encontraram uma dependência econômica quase absoluta das meninas casadas em relação a seus parceiros, que são, em geral, homens mais velhos e já inseridos no mercado de trabalho. A falta de perspectivas de educação e emprego para as próprias meninas torna a autonomia financeira um sonho distante, e o casamento, a única via percebida para a segurança material. A união não é vista como uma escolha entre múltiplas opções, mas como a única saída de um cenário de privações.

Normas Sociais e Desigualdade de Gênero

Se a pobreza é o alicerce, as normas sociais e a desigualdade de gênero são as bases que mantêm a estrutura do casamento infantil de pé. A prática é extremamente naturalizada em muitas comunidades [4]. Frases como “sempre foi assim” ou “é o destino da mulher” refletem uma aceitação cultural que transcende a lógica legal ou de direitos.

Essas normas são profundamente generificadas. A pesquisa do Promundo [6] destaca como as expectativas sociais são diferentes para meninos e meninas. Para os meninos, espera-se que estudem, trabalhem e só então constituam família. Para as meninas, o casamento e a maternidade são vistos como o ápice de sua realização pessoal, um destino a ser cumprido o quanto antes. A virgindade da menina é vista como um capital familiar, e o casamento precoce, uma forma de “protegê-la” e garantir que ela se case “direito”.

Subjacente a tudo isso está uma visão de mundo patriarcal que enxerga a mulher como subordinada ao homem. A ideia de que “uma mulher não é nada sem um homem” ou de que ela precisa da proteção masculina para navegar o mundo ainda é prevalente. O casamento, nesse contexto, é a transação que formaliza essa transferência de tutela: da família de origem para o marido.

Gravidez Precoce e o Controle da Sexualidade

A gravidez na adolescência é frequentemente o gatilho que precipita a união. A BBC Brasil a descreve como a “grande motivadora” do casamento [3]. Dados do UNFPA indicam que 90% das gestações em adolescentes em países em desenvolvimento ocorrem no contexto de uma união [5]. Essa estatística revela um ciclo perverso: a falta de acesso à educação sexual e a métodos contraceptivos, combinada com a pressão para iniciar a vida sexual, leva à gravidez. Uma vez grávida, a menina e sua família enfrentam um enorme estigma social. O casamento surge, então, como a única “solução” para “reparar a honra” e dar um pai à criança.

Essa “solução”, no entanto, é uma armadilha. Ela serve como um poderoso mecanismo de controle sobre o corpo e a sexualidade da menina. A lógica, como aponta a pesquisa da BBC, é a de que “é melhor ser de um só do que de vários” [3]. A união formaliza o controle do parceiro sobre a vida da menina, limitando sua mobilidade, suas interações sociais e suas decisões. A frase “ela vai no meu barco”, dita por um marido de 19 anos sobre sua esposa de 14, capturada na pesquisa do Promundo [6], é a expressão mais crua dessa dinâmica de poder, onde a menina deixa de ter um projeto de vida próprio para se tornar coadjuvante no projeto de seu marido.


Violência Estrutural e a Busca por Proteção

Um dos aspectos mais cruéis e paradoxais do casamento infantil é que ele é frequentemente buscado como um refúgio contra a violência, apenas para se tornar uma nova fonte de abuso. Em muitas comunidades, a violência é endêmica. Meninas enfrentam abuso sexual e físico dentro de suas próprias casas ou nas ruas de seus bairros, especialmente em áreas dominadas pelo crime organizado [4, 6].

Há também os casos que a menina mente que está em uma relação conjugal a pedido da família para que seu abusador – muitas vezes o provedor da família – não seja denunciado e preso. Ainda podemos ver meninas que são obrigadas a se casarem para aliviar o custo da família de ter “mais uma boca para alimentar”.

Nesse contexto de insegurança generalizada, a figura de um parceiro mais velho e estabelecido pode parecer uma promessa de proteção. A união é vista como uma forma de se proteger de múltiplos agressores, colocando-se sob a “guarda” de um único homem. Em alguns casos extremos, identificados pela pesquisa do Promundo, o casamento com traficantes locais surge como uma estratégia para obter status, recursos e uma forma de proteção violenta, mas eficaz, dentro da lógica da comunidade [6].

O paradoxo é que, ao entrar na união, a menina se torna ainda mais vulnerável à violência por parceiro íntimo. O isolamento social, a dependência econômica e a diferença de idade e poder criam um ambiente propício para o abuso físico, psicológico, sexual e financeiro. O refúgio se revela uma cela.


Os Ciclos Viciosos

Compreender o casamento infantil exige ir além da listagem de causas e analisar como elas se interconectam, formando sistemas de retroalimentação que perpetuam o problema através das gerações. Esses ciclos viciosos são o que tornam o fenômeno tão resiliente e difícil de erradicar.

  • O Ciclo Pobreza-Educação-Casamento: Este é talvez o ciclo mais fundamental. Uma menina nascida em uma família pobre tem acesso limitado à educação de qualidade. A falta de perspectiva educacional e profissional torna o casamento uma alternativa atraente ou inevitável. Ao se casar, ela quase invariavelmente abandona a escola — o Banco Mundial estima que o casamento infantil seja responsável por 30% da evasão escolar feminina no ensino secundário [4].

    Sem educação, suas chances de obter um emprego digno são mínimas, condenando-a à dependência econômica e à perpetuação da pobreza. Seus filhos, especialmente as filhas, nascerão no mesmo ciclo de privação, enfrentando as mesmas “escolhas” limitadas.
  • A Tríade Controle-Gravidez-Casamento: Este ciclo opera no nível do corpo e da autonomia. A repressão da sexualidade e a falta de educação sexual integral nas escolas e nas famílias resultam em desinformação. A pressão social e, por vezes, a coerção, levam ao início precoce da vida sexual sem proteção adequada, resultando em uma gravidez não planejada.

    A gravidez, por sua vez, aciona um pânico moral na família e na comunidade, e o casamento é imposto como a única forma de gerenciar o “problema”, legitimando a criança e evitando o estigma de “mãe solteira”. A união, então, institucionaliza o controle do parceiro sobre a vida da menina, fechando o ciclo e garantindo que ela não terá autonomia para quebrar os outros ciclos em que está inserida.
  • O Paradoxo da Violência e da Proteção: Este ciclo revela a lógica perversa que opera em contextos de insegurança. A violência generalizada (doméstica ou comunitária) cria uma demanda por proteção. Na ausência de proteção efetiva do Estado, a proteção privada oferecida por um parceiro masculino torna-se uma opção.

    A menina entra na união buscando segurança, mas a estrutura de poder desigual dentro do casamento a torna um alvo fácil para a violência por parceiro íntimo. O trauma resultante do abuso, combinado com o isolamento social, diminui sua capacidade de buscar ajuda ou sair da relação, normalizando a violência como parte da vida conjugal e, potencialmente, transmitindo esse padrão para seus filhos.

Essas dinâmicas demonstram que o casamento infantil não é um evento isolado, mas um nó em uma longa corrente de desigualdades. Cada fator reforça o outro, criando uma armadilha da qual é extremamente difícil escapar sem uma intervenção externa e sistêmica.


Os Impactos Psicológicos

Se as consequências socioeconômicas do casamento infantil são devastadoras, seus impactos na arquitetura da psique e no desenvolvimento neurológico da criança são ainda mais profundos e, muitas vezes, permanentes. A experiência de ser inserida em uma união conjugal precoce não é apenas um evento de vida adverso; é um trauma complexo e de desenvolvimento, uma forma de estresse crônico e tóxico que ocorre em um período crítico de formação cerebral e de identidade.

A Neurobiologia do Trauma: Como o Casamento Infantil Esculpe um Cérebro em Alerta

A adolescência é a segunda janela mais crítica do desenvolvimento cerebral depois da primeira infância. Durante este período, o cérebro passa por um processo intenso de maturação e poda sináptica, especialmente no córtex pré-frontal (CPF), a área responsável pelo planejamento, tomada de decisões, controle de impulsos e regulação emocional. Simultaneamente, o sistema límbico, que inclui a amígdala (centro de processamento do medo e das emoções) e o hipocampo (essencial para a memória e o aprendizado), está em plena atividade.

O estresse tóxico gerado pelo ambiente de um casamento infantil — caracterizado por medo, submissão, possível violência e a pressão de responsabilidades adultas — desregula cronicamente o eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA), o principal sistema de resposta ao estresse do corpo. A liberação constante de cortisol, o “hormônio do estresse”, tem efeitos corrosivos sobre um cérebro em desenvolvimento:

  • Hiperativação da Amígdala: O cérebro da menina fica em um estado de alerta constante, percebendo ameaças em toda parte. Isso leva a uma reatividade emocional exacerbada, ansiedade crônica e uma incapacidade de se sentir segura, mesmo em situações que não apresentam perigo real.
  • Prejuízo ao Hipocampo: O excesso de cortisol é tóxico para os neurônios do hipocampo, prejudicando a formação de novas memórias e a capacidade de aprendizado. Isso pode explicar dificuldades escolares (além da evasão) e a sensação de “névoa mental” frequentemente relatada por sobreviventes de trauma.
  • Atraso na Maturação do Córtex Pré-Frontal: O estresse crônico desvia os recursos neurais para a sobrevivência imediata, retardando o desenvolvimento do CPF. O resultado é uma dificuldade duradoura no controle de impulsos, na avaliação de consequências e no planejamento futuro. Paradoxalmente, a menina é forçada a tomar decisões de adulto com um aparato neurológico cuja maturação foi comprometida.

Em essência, o casamento infantil esculpe um cérebro que é otimizado para a sobrevivência em um ambiente perigoso, mas mal adaptado para a prosperidade em um ambiente seguro. A menina aprende neurologicamente que o mundo é um lugar imprevisível e ameaçador, uma lição que carregará por toda a vida.


A Fratura da Identidade:
O Roubo da Adolescência

Do ponto de vista da psicologia do desenvolvimento, a adolescência é a fase da “Identidade versus Confusão de Papéis”, segundo a teoria de Erik Erikson. É o período em que o indivíduo explora diferentes papéis, valores e crenças para construir um senso estável de si mesmo. O casamento infantil oblitera este processo. Ele impõe uma identidade pré-fabricada e restritiva — a de “esposa” e, logo depois, “mãe” — antes que a menina tenha tido a chance de descobrir quem ela é ou quem ela poderia ser.

Este fenômeno é o que se chama de “roubo da infância”. As pesquisas qualitativas [6] capturam essa fratura de identidade de forma pungente:

Uma menina casada aos 14 anos, ao ser perguntada sobre sua fase de vida, responde que se sente como uma “adolescente com mente de adulto”. Outra, na mesma situação, diz que se considera “criança porque não tive infância”.

Essas respostas contraditórias não são confusas; são o reflexo preciso de uma experiência psicologicamente fragmentadora. A menina não é nem criança, nem adolescente, nem adulta. Ela existe em um limbo identitário, tendo perdido o direito de ser criança sem ter adquirido as ferramentas para ser adulta. As atividades normativas da adolescência — a socialização com pares, a exploração de interesses, os primeiros namoros consensuais, os erros e aprendizados — são substituídas por um roteiro rígido de obrigações domésticas e conjugais.

A perda do grupo de pares é particularmente danosa, pois é através da interação com iguais que os adolescentes testam identidades e desenvolvem habilidades sociais. Isolada em casa, a menina-noiva perde essa arena crucial de desenvolvimento.


O Espectro da Psicopatologia:
Depressão, Ansiedade e Desamparo Aprendido

O ambiente de um casamento infantil é um terreno fértil para o desenvolvimento de transtornos mentais graves. A literatura científica internacional [8] é robusta em correlacionar a prática com um risco significativamente elevado de:

  • Depressão: A perda de agência, o isolamento social, a sobrecarga de responsabilidades e, frequentemente, a violência, são fatores de risco clássicos para a depressão. A sensação de desesperança e a incapacidade de vislumbrar um futuro diferente podem levar a quadros depressivos crônicos.
  • Transtornos de Ansiedade: Vivendo em um estado de hipervigilância constante, com medo da reação do marido ou da família dele, as meninas frequentemente desenvolvem transtorno de ansiedade generalizada, fobias sociais ou ataques de pânico.
  • Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT): Para aquelas que sofrem violência física ou sexual, o TEPT é uma consequência comum. Os sintomas incluem flashbacks, pesadelos, evitação de gatilhos que lembrem o trauma e uma sensação de entorpecimento emocional.

Um conceito psicológico central para entender este quadro é o de “desamparo aprendido” (learned helplessness), de Martin Seligman. Exposta a uma situação aversiva e incontrolável por um período prolongado, a menina aprende que suas ações não têm efeito sobre o resultado. Ela aprende que não importa o que faça, ela não pode escapar do controle, da crítica ou da violência. Essa aprendizagem leva à passividade, à resignação e a um déficit motivacional profundo, que são o cerne da depressão. Ela para de lutar não por fraqueza, mas porque aprendeu que lutar é inútil.


A Maternidade como Trauma Adicional

Enquanto a sociedade pode ver a maternidade como a “realização” da mulher, para uma menina-noiva, ela é frequentemente um trauma adicional. Fisiologicamente despreparada, ela enfrenta maiores riscos de complicações, como fístula obstétrica, eclampsia e morte materna [5]. Psicologicamente, a maternidade impõe uma carga esmagadora. Uma criança, ainda em pleno processo de desenvolvimento, é forçada a se tornar a principal cuidadora de outra criança.

Ela tem que navegar suas próprias necessidades de desenvolvimento não atendidas enquanto tenta responder às demandas de um bebê. Sem uma rede de apoio adequada, com um parceiro muitas vezes ausente ou abusivo, e isolada de sua própria família, a experiência pode levar à depressão pós-parto severa e a dificuldades no estabelecimento de um vínculo seguro com o filho.


A Herança do Trauma: O Ciclo Intergeracional

As cicatrizes psicológicas do casamento infantil não terminam na menina. Elas são transmitidas para a próxima geração, criando um ciclo intergeracional de trauma e vulnerabilidade. Uma mãe que sofre de depressão crônica, ansiedade ou TEPT terá sua capacidade de maternar comprometida. A teoria do apego de John Bowlby nos ensina que um cuidador responsivo e emocionalmente disponível é a base para o desenvolvimento de um apego seguro na criança, que por sua vez é o alicerce para a saúde mental futura.

Uma mãe traumatizada pode ser emocionalmente indisponível, excessivamente irritável ou intrusiva. Isso pode levar a um apego inseguro em seus filhos, que crescerão com maiores riscos de desenvolverem seus próprios problemas emocionais e de relacionamento. Além disso, as crianças que crescem em um lar onde a violência e a subordinação feminina são a norma aprendem que esses são modelos de relacionamento aceitáveis. Meninos podem internalizar modelos de masculinidade agressiva e controladora, enquanto meninas podem aprender que seu valor reside na submissão.

Dessa forma, o trauma individual da menina-noiva se metastatiza em um padrão familiar e comunitário, garantindo que as sementes da desigualdade e da violência sejam plantadas na próxima geração, tornando o ciclo do casamento infantil ainda mais difícil de ser quebrado.


Implicações para uma Ação Efetiva

O retrato do casamento infantil no Brasil em 2022 é o de um problema crônico, complexo e profundamente enraizado nas desigualdades estruturais que definem a sociedade brasileira. As 34.202 crianças e adolescentes em união conjugal não são uma anomalia estatística, mas a manifestação visível de uma falha sistêmica em garantir os direitos mais básicos à infância, à educação, à saúde e à proteção. A resiliência desse fenômeno, mesmo diante de proibições legais, demonstra que leis, por si sós, são insuficientes quando não acompanhadas de uma transformação profunda nas condições materiais e culturais que o sustentam.

Uma análise das causas e dos ciclos viciosos que a perpetuam exige uma mudança de paradigma na forma como o problema é enfrentado. Intervenções focadas em apenas um aspecto — seja a aplicação da lei, a educação ou a transferência de renda — estão fadadas ao fracasso se não reconhecerem a natureza interconectada dos fatores em jogo. O enfrentamento eficaz do casamento infantil demanda uma resposta multissetorial, integrada e sustentada no longo prazo, que atue simultaneamente em diversas frentes:

  1. Empoderamento Educacional e Econômico: A principal vacina contra o casamento infantil é manter a menina na escola e criar para ela perspectivas de autonomia futura. Isso requer investimentos maciços em educação pública de qualidade, com busca ativa para prevenir a evasão, e a implementação de programas de educação sexual integral que deem às meninas o conhecimento para decidir sobre seus próprios corpos. Paralelamente, são essenciais políticas de empoderamento econômico para mulheres, como programas de capacitação profissional e acesso a microcrédito, que ofereçam alternativas reais ao casamento como estratégia de sobrevivência.
  1. Transformação de Normas Sociais e Culturais: É imperativo desafiar e transformar as normas de gênero patriarcais que naturalizam o casamento infantil. Isso envolve campanhas de comunicação de massa, mas, crucialmente, trabalho comunitário de base que engaje pais, mães, líderes religiosos, professores e, fundamentalmente, homens e meninos. É preciso desconstruir a masculinidade tóxica que associa poder ao controle sobre as mulheres e construir novos referenciais de relacionamentos baseados no respeito, na igualdade e no consentimento.
  1. Fortalecimento do Sistema de Proteção e Garantia de Direitos: O Sistema de Garantia de Direitos (que inclui Conselhos Tutelares, CRAS, CREAS e o sistema de justiça) precisa ser fortalecido e capacitado para identificar, prevenir e responder aos casos de união precoce, especialmente as informais. Isso significa criar protocolos claros, treinar profissionais para reconhecer os sinais de risco e garantir que a lei seja aplicada de forma a proteger a criança, e não puni-la.
  1. Acesso Universal à Saúde Integral: É fundamental garantir que adolescentes tenham acesso irrestrito e confidencial a serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo todos os métodos contraceptivos, aconselhamento e apoio em saúde mental. O apoio psicossocial para meninas que já estão em uniões ou que saíram delas é crucial para lidar com o trauma e reconstruir seus projetos de vida.

Romper o ciclo vicioso do casamento infantil é um dos maiores desafios de direitos humanos que o Brasil enfrenta. Não se trata apenas de resgatar 34.202 crianças, mas de desarmar um mecanismo que reproduz a pobreza, a desigualdade e a violência geração após geração. Cada menina que permanece na escola, que tem sua autonomia garantida e que é livre para escolher seu próprio futuro não é apenas uma estatística de sucesso; é a personificação da quebra de um ciclo e a promessa de uma sociedade mais justa, igualitária e desenvolvida para todos.


Referências

[1] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). (2025). Censo Demográfico 2022: Nupcialidade e Família. Rio de Janeiro: IBGE.

[2] Brasil. (2019). Lei nº 13.811, de 12 de março de 2019. Altera o art. 1.520 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para suprimir as exceções legais permissivas do casamento infantil.

[3] Escóssia, F. (2015). Pobreza e abusos estimulam casamentos infantis no Brasil. BBC News Brasil.

[4] Childhood Brasil. (2020). Casamento infantil e suas consequências.

[5] Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). (s.d.). Casamento infantil.

[6] Taylor, A., et al. (2015). “She Goes With Me in My Boat”: Child and Adolescent Marriage in Brazil. Instituto Promundo & Plan International.

[7] Itapuã Notícias. (2025). Casamento infantil persiste no Brasil com mais de 34000 menores em união.

[8] Burgess, R. A., et al. (2022). A narrative review of mental health consequences of child marriage. PLOS Global Public Health.

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