Resenhas e Opinião

31 – Pacto Nacional de Prevenção ao Feminicídio: Um Plano de R$ 2,5 Bilhões Paralisado por Ineficiência e Falta de Execução

Relatório do Senado revela falhas sistêmicas, execução orçamentária irrisória e uma rede de proteção que não protege. As denúncias expõem um cenário de abandono e risco para milhões de mulheres no Brasil

Pacto Nacional de Prevenção ao Feminicídio – Em 16 de agosto de 2023, o Brasil deu um passo que parecia decisivo na luta contra a violência de gênero. Com a publicação do Decreto nº 11.640, foi instituído o Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios (PNPF), uma iniciativa ambiciosa com um orçamento previsto de R$ 2,5 bilhões e um plano de ação composto por 73 medidas intersetoriais. O objetivo era claro: prevenir todas as formas de discriminação, misoginia e violência contra as mulheres, com vigência até 31 de dezembro de 2027.

Contudo, um relatório devastador emitido pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado Federal, sob a relatoria da Senadora Mara Gabrilli, revela uma realidade completamente diferente. O documento, datado de 26 de novembro de 2025, expõe um quadro de paralisia, ineficiência e abandono. As denúncias são graves e apontam para problemas estruturais, institucionais e culturais que não apenas comprometem, mas praticamente anulam a efetividade da política pública mais importante do país para a proteção da vida das mulheres.

Este artigo se aprofunda nos achados do relatório, detalhando cada uma das denúncias e expondo as falhas que transformaram uma promessa de esperança em um retrato do descaso. A análise que se segue não é apenas um resumo dos problemas, mas um alerta sobre como a inação do Estado continua a colocar em risco a vida de milhões de brasileiras.


Pacto Nacional de Prevenção ao Feminicídio- Denúncia 1: O Orçamento Bilionário que Nunca Chegou à Ponta

A principal e mais chocante revelação do relatório é a baixíssima execução orçamentária do PNPF. Um plano de R$ 2,5 bilhões, que deveria financiar ações de prevenção, proteção e acolhimento, está, na prática, engavetado. Os números, apurados pela Consultoria de Orçamentos do Senado Federal (Conorf), são alarmantes e demonstram um completo descolamento entre o planejamento e a ação.

A Execução Orçamentária em Números:

AnoOrçamento PrevistoOrçamento ExecutadoPercentual de Execução
2024(Não especificado no resumo)(Não especificado no resumo)28,4%
2025 (até junho)(Não especificado no resumo)(Não especificado no resumo)5,3%

Os dados são inequívocos: em 2024, menos de um terço dos recursos foi utilizado. Em 2025, o cenário é ainda mais grave, com uma execução de apenas 5,3% até o meio do ano. Essa subutilização dos recursos tem consequências diretas e fatais. A falta de dinheiro na ponta significa que projetos essenciais, conduzidos pelas secretarias das mulheres nos estados e municípios, simplesmente não saem do papel.

O relatório destaca que a dependência de emendas parlamentares, que são voláteis e sujeitas a negociações políticas, agrava a situação. Sem um fluxo de financiamento contínuo e garantido, as iniciativas de prevenção e atendimento se tornam intermitentes e insustentáveis. A consequência é a descontinuidade de serviços que poderiam salvar vidas.

O que isso significa na prática? Significa que a promessa de um pacto robusto e bem financiado não passa de uma miragem. O dinheiro que deveria construir abrigos, capacitar profissionais e ampliar a rede de atendimento está parado, enquanto mulheres continuam morrendo.


Denúncia 2: A Rede de Proteção Desigual e Inexistente

Um dos pilares do enfrentamento à violência doméstica é a existência de uma rede de serviços especializados que possa acolher e proteger as vítimas. O relatório do Senado, no entanto, denuncia uma cobertura extremamente desigual e, em muitos locais, inexistente.

A Falha na Estrutura:

O documento aponta que, em inúmeras cidades brasileiras, não há acolhimento imediato e estruturado para mulheres em situação de risco. A ausência de equipamentos previstos em lei, como as Casas da Mulher Brasileira e os Centros de Referência, é um problema crônico. Essa lacuna é ainda mais acentuada em áreas rurais, de floresta e nas periferias urbanas, onde a presença do Estado é mais necessária e, paradoxalmente, mais fraca.

O ponto mais crítico desta denúncia, que se conecta diretamente à falha orçamentária, é a constatação da Nota Técnica nº 41/2025 da Conorf: os valores previstos para apoiar a implementação da Casa da Mulher Brasileira e dos Centros de Referência não tiveram um único centavo executado em 2024 e 2025. A taxa de execução foi de ZERO por cento.

Essa revelação é um atestado da inoperância do plano. Enquanto o discurso oficial celebra a criação de políticas públicas, a realidade material é de total abandono. As mulheres que vivem em locais sem esses serviços ficam desamparadas, sem ter para onde ir e sem acesso a direitos básicos que poderiam garantir sua sobrevivência.

O Impacto da Desigualdade Territorial:

A falta de capilaridade da rede de proteção cria um abismo entre as mulheres que vivem nos grandes centros e aquelas que estão em regiões remotas. Para uma mulher que vive no interior da Amazônia ou em uma comunidade rural no sertão nordestino, a delegacia mais próxima pode estar a horas de distância, e um centro de referência pode ser algo que ela nunca viu. Essa desigualdade territorial não é apenas uma falha logística; é uma violação de direitos que condena mulheres à própria sorte.


Denúncia 3: O Silêncio da Subnotificação – 59% das Vítimas Não Denunciam

Se os serviços não chegam a quem precisa, o relatório também mostra que as vítimas não estão chegando aos serviços. Um dos dados mais preocupantes apresentados é o altíssimo índice de subnotificação dos casos de violência. Segundo o Observatório da Mulher contra a Violência do Senado Federal, 59% das vítimas não realizam qualquer tipo de denúncia formal.

Por que as Mulheres Não Denunciam?

O relatório aponta que a maioria das mulheres busca apoio inicial em suas redes informais: família, igreja ou amigos. O recurso à rede estatal de proteção é, para muitas, a última alternativa. Isso acontece por uma série de fatores que se entrelaçam e reforçam mutuamente.

A principal barreira para a denúncia é o medo do agressor e das possíveis represálias que uma denúncia poderia desencadear. Muitas vítimas vivem em constante terror, sabendo que qualquer ação que as exponha pode resultar em violência ainda mais severa. Além disso, muitas vítimas se sentem envergonhadas ou culpadas pela violência que sofrem, carregando uma culpa que não lhes pertence e que as impede de buscar ajuda.

A dependência financeira é outro fator crítico, pois a falta de autonomia econômica impede que muitas mulheres rompam o ciclo de violência, mesmo quando desejam fazê-lo. Há também a descrença no sistema, pois muitas mulheres percebem que a denúncia não levará a uma solução efetiva e duradoura, desestimulando-as a procurar ajuda. Por fim, a falta de informação deixa muitas mulheres simplesmente ignorantes sobre os serviços disponíveis ou sobre como acessá-los.

O alto índice de subnotificação tem um efeito devastador. Ele cria uma espiral de invisibilidade que impede que o Estado tenha um diagnóstico real da dimensão da violência de gênero no país. Sem dados precisos, é impossível planejar políticas públicas eficazes. O número oficial de casos se torna apenas a ponta de um iceberg, escondendo uma realidade muito mais grave que permanece oculta nas casas, nas relações privadas e nos silêncios das vítimas.

A Necessidade de uma Abordagem Proativa:

O relatório enfatiza a necessidade de fortalecer estratégias de aproximação e acolhimento nas comunidades. Não basta esperar que a vítima procure a delegacia; é preciso que o Estado vá até ela. Isso inclui a ampla divulgação dos serviços disponíveis, a criação de canais de denúncia mais acessíveis e a capacitação de líderes comunitários para que possam orientar e apoiar as mulheres em suas localidades. Enquanto a subnotificação persistir em níveis tão elevados, qualquer plano de enfrentamento à violência estará fadado ao fracasso, pois atuará sobre uma fração mínima do problema real.


Denúncia 4: Profissionais Despreparados e a Revitimização Institucional

Mesmo quando uma mulher supera todas as barreiras e consegue chegar a um serviço de atendimento, ela ainda corre o risco de encontrar um profissional despreparado, que pode agravar seu sofrimento. O relatório denuncia a insuficiência de profissionais capacitados para um acolhimento com perspectiva de gênero como um dos pontos mais críticos do sistema.

O Desconhecimento que Abala a Confiança:

Dados do projeto “Justiça de Gênero – O direito à informação salva vidas” corroboram a denúncia: muitos profissionais que estão na linha de frente do atendimento desconhecem conceitos fundamentais sobre violência de gênero. Esse despreparo resulta em um atendimento que não é qualificado nem humanizado, e que muitas vezes reproduz os mesmos preconceitos que a vítima enfrenta na sociedade.

Quando um policial, um assistente social ou um profissional de saúde não compreende as dinâmicas da violência doméstica, ele pode culpar a vítima, minimizar a gravidade da situação ou simplesmente não saber como agir. Esse tipo de abordagem, conhecida como revitimização institucional, causa um dano profundo na mulher que buscou ajuda, destruindo sua confiança no sistema e fazendo com que ela se sinta ainda mais desamparada. A vítima que esperava encontrar apoio e compreensão acaba enfrentando julgamentos, culpabilização e uma falta de empatia que a leva a se arrepender de ter denunciado.

A Alta Rotatividade que Impede a Especialização:

Para agravar o quadro, o relatório aponta uma alta rotatividade de equipes e especialistas. Profissionais são constantemente trocados de função ou deixam seus cargos, o que impede a formação de equipes experientes e a continuidade dos serviços. A especialização, que é fundamental para um atendimento de qualidade, se torna praticamente impossível em um cenário de instabilidade permanente.

Essa rotatividade é, muitas vezes, reflexo da falta de valorização e das más condições de trabalho oferecidas a esses profissionais. Sem investimento em formação continuada, salários adequados e suporte psicológico, a tendência é que os melhores talentos não permaneçam na área. O resultado é um ciclo vicioso: a falta de capacitação leva a um atendimento inadequado, que afasta as vítimas e desacredita o sistema, o que por sua vez desmotiva os profissionais e alimenta a alta rotatividade. Romper esse ciclo é uma das tarefas mais urgentes para a efetividade do pacto.


Denúncia 5: A Torre de Babel Institucional – Falta de Integração e Comunicação

O enfrentamento à violência contra a mulher é uma tarefa complexa que exige a atuação coordenada de diversas áreas do poder público. Saúde, segurança, assistência social, sistema de justiça e educação precisam dialogar e trabalhar em conjunto. No entanto, o relatório do Senado revela um cenário de fragmentação e falta de articulação, uma verdadeira “Torre de Babel” institucional onde cada um fala uma língua e ninguém se entende.

Abordagens Setoriais e a Ausência de uma Visão Sistêmica:

A atuação dos serviços, segundo o documento, ainda se caracteriza por abordagens limitadas e setoriais. Cada órgão atua dentro de sua própria “caixinha”, sem uma visão sistêmica do problema. A mulher que busca ajuda é frequentemente obrigada a peregrinar por diferentes serviços, repetindo sua história diversas vezes e enfrentando uma burocracia que a desgasta e a desencoraja.

O relatório é explícito ao apontar a falta de articulação entre saúde, segurança, assistência social e Judiciário. Não existem protocolos claros e unificados para o encaminhamento das vítimas entre os diferentes setores da rede. Isso dificulta tanto o direcionamento da mulher para o serviço correto quanto o acompanhamento de seu caso ao longo do tempo. A vítima que deveria ser encaminhada de forma fluida de um serviço para outro acaba sendo perdida no meio do caminho, caindo nas lacunas entre as instituições.

A Carência de Protocolos de Fluxo:

Um dos problemas mais concretos identificados é a escassez de protocolos bem definidos para o fluxo de atendimento. Como uma mulher que chega a um posto de saúde com sinais de agressão deve ser encaminhada para a delegacia? E como a delegacia deve comunicar o caso à assistência social para garantir o acolhimento da vítima e de seus filhos? Essas perguntas, que deveriam ter respostas claras e padronizadas, permanecem sem solução em grande parte do país.

Essa ausência de fluxos resulta em processos incompletos ou pouco conhecidos pelos próprios profissionais. O resultado é um atendimento falho, que deixa lacunas na proteção da vítima e aumenta sua vulnerabilidade. A falta de integração não é apenas uma questão de eficiência administrativa; é um fator que contribui diretamente para a perpetuação da violência. Quando os serviços não conversam entre si, a vítima fica desamparada e o agressor continua impune.


Denúncia 6: A Saúde Mental Ignorada – As Sobreviventes

A violência de gênero não deixa apenas marcas físicas. As cicatrizes psicológicas são profundas e, muitas vezes, mais difíceis de curar. O relatório da Senadora Mara Gabrilli lança um alerta sobre uma das dimensões mais negligenciadas do problema: a saúde mental das vítimas.

O Risco de Suicídio e a Falta de Apoio:

Os dados apresentados pelo Projeto “Justiça de Gênero” são chocantes: aproximadamente metade das sobreviventes de violência doméstica relatou ideação ou tentativa de suicídio. Esse número revela o nível de desespero a que essas mulheres chegam. A violência contínua, o medo, a falta de perspectiva e o isolamento criam um sofrimento psíquico tão intenso que a morte parece ser a única saída.

Diante dessa realidade, seria esperado que a rede de proteção oferecesse um suporte psicossocial robusto e estruturado. No entanto, o que o relatório encontra é uma rede psicossocial insuficiente e despreparada. Faltam psicólogos e psiquiatras especializados, e não existem protocolos específicos para lidar com o risco de suicídio entre as vítimas de violência. As mulheres que chegam ao sistema com pensamentos suicidas não encontram o apoio especializado que necessitam, deixando-as ainda mais vulneráveis.

As Vítimas Invisíveis: Crianças e Adolescentes:

O impacto psicológico da violência não se restringe à mulher. As crianças e adolescentes que presenciam as agressões também são vítimas e sofrem consequências severas em seu desenvolvimento emocional e social. Elas podem desenvolver traumas, transtornos de ansiedade, depressão e problemas de comportamento, além de terem uma maior probabilidade de se tornarem vítimas ou agressores no futuro.

O relatório denuncia que o atendimento a essas vítimas secundárias é ainda mais precário. As equipes de assistência social e psicologia focadas no atendimento integral às famílias são um recurso extremamente escasso na rede de serviços. As crianças, que são as testemunhas silenciosas do terror doméstico, acabam sendo completamente ignoradas pelo sistema.

Seus traumas não são tratados, seus medos não são acolhidos, e suas necessidades de desenvolvimento são negligenciadas. A negligência com a saúde mental das vítimas e de seus filhos é uma falha grave que compromete qualquer chance de recuperação e de rompimento do ciclo de violência. Sem apoio psicológico, as sobreviventes e suas famílias ficam presas a um ciclo de dor e sofrimento que pode durar a vida inteira.


Denúncia 7: O Racismo e a Desigualdade Territorial no Atendimento

A violência de gênero no Brasil tem cor e endereço. O relatório do Senado é enfático ao apontar as desigualdades no atendimento a povos originários, mulheres negras e outras populações vulneráveis.

Mulheres Negras e Indígenas: As Maiores Vítimas

As estatísticas de feminicídio no Brasil mostram que as mulheres negras são as principais vítimas. O racismo estrutural, que permeia todas as camadas da sociedade brasileira, se soma ao machismo, potencializando a violência. Mulheres negras enfrentam mais dificuldades de acesso a serviços, são mais desacreditadas quando denunciam e sofrem com a falta de políticas públicas que considerem suas especificidades. Elas carregam não apenas o peso da violência de gênero, mas também o peso do racismo que as torna ainda mais vulneráveis.

Da mesma forma, as mulheres indígenas enfrentam barreiras culturais e geográficas que as tornam extremamente vulneráveis. O machismo e o patriarcado, muitas vezes exacerbados em suas comunidades, se somam à dificuldade de acesso à proteção em territórios remotos. A falta de serviços de atendimento que respeitem suas culturas e falem suas línguas é um obstáculo quase intransponível. Para uma mulher indígena, buscar ajuda pode significar abandonar sua comunidade, sua língua e sua identidade.

O relatório denuncia a ausência de práticas institucionais antirracistas e de políticas públicas específicas para minorias étnicas. O atendimento, quando existe, é pensado a partir de uma perspectiva branca e urbana, que não contempla a diversidade da população brasileira. Populações como LGBTQIA+ e pessoas com deficiência também enfrentam barreiras adicionais e um atendimento inadequado. Mulheres trans, mulheres com deficiência e mulheres que fogem dos padrões heteronormativos enfrentam discriminação dupla ou tripla, sendo frequentemente ignoradas pelos serviços.

A Necessidade de um Olhar Interseccional:

Para ser eficaz, a política de enfrentamento à violência precisa adotar uma perspectiva interseccional, que compreenda como as diferentes formas de opressão (gênero, raça, classe, orientação sexual, deficiência, etc.) se cruzam e se sobrepõem, criando vulnerabilidades específicas. Enquanto o sistema continuar a tratar todas as mulheres como um grupo homogêneo, ele falhará em proteger aquelas que mais precisam. As mulheres negras, indígenas, LGBTQIA+ e com deficiência precisam de políticas que as reconheçam em suas especificidades e que combatam não apenas o machismo, mas também o racismo, a homofobia e a capacitismo que as cercam.


Denúncia 8: Medidas Protetivas que Não Protegem – A Burocracia que Mata

A medida protetiva de urgência é um dos principais instrumentos da Lei Maria da Penha para garantir a segurança da mulher em situação de risco. Ela pode determinar o afastamento do agressor do lar, a proibição de contato e outras ações para proteger a vítima. No entanto, o relatório do Senado denuncia que, na prática, esse instrumento tem se mostrado ineficaz em muitos casos, devido à lentidão do sistema e a falhas de comunicação.

O Fluxo Lento e a Janela de Risco:

O documento aponta que o fluxo institucional para a concessão e o cumprimento das medidas protetivas é lento. Desde o momento em que a mulher faz a denúncia até a efetivação da medida, pode se passar um tempo precioso, durante o qual ela permanece em risco. Esse tempo não é um luxo que as vítimas podem se dar; é um período de extrema vulnerabilidade durante o qual o agressor sabe que foi denunciado e pode tentar uma última retaliação.

Uma das falhas mais graves identificadas é a falta de alinhamento entre o prazo para a entrega da medida à mulher e o momento em que o agressor toma ciência da decisão. Em muitos casos, o agressor é notificado antes da vítima, o que cria uma “janela de risco” extremamente perigosa, na qual ele pode tentar uma última e fatal retaliação. A vítima que acredita estar protegida pela lei descobre que o agressor já sabe da medida, criando uma situação de risco iminente.

O relatório traz um dado assustador: feminicídios ocorreram mesmo com a medida protetiva vigente. Isso demonstra que a simples existência do papel não é suficiente para garantir a segurança. É preciso fiscalização, monitoramento e uma resposta rápida em caso de descumprimento. Quando uma medida protetiva é descumprida, a resposta do sistema deve ser imediata e severa, mas frequentemente não é.

A Falta de Aviso e o Perigo Constante:

Outra denúncia grave é a de que as vítimas não são avisadas previamente quando o agressor sai do sistema prisional. Uma mulher que acredita estar segura porque seu agressor está preso pode ser surpreendida pela liberdade dele, sem ter tido tempo de tomar precauções. Essa falha de comunicação expõe as vítimas a um perigo constante e demonstra um profundo descaso do sistema com sua segurança. A mulher que deveria ser informada sobre cada movimento do seu agressor fica completamente no escuro, vulnerável a um ataque que ela não viu chegando.

A ineficácia das medidas protetivas é um dos sinais mais claros da falência do sistema. Quando o principal instrumento legal de proteção falha, a mensagem que se passa para a vítima é a de que não há para onde correr. E a mensagem para o agressor é a de que ele pode continuar a agir com impunidade.


Denúncia 9: A Governança Inoperante do Pacto Nacional

Para que um plano tão complexo como o PNPF funcione, é essencial que sua governança seja ativa, transparente e eficiente. O relatório, no entanto, revela que a estrutura de gestão do pacto é tão falha quanto sua execução orçamentária. O Comitê Gestor do Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios (CG PNPF), órgão responsável por deliberar, aprovar e monitorar o plano, simplesmente não está funcionando como deveria.

Reuniões Fantasmas e a Falta de Monitoramento:

O regimento interno do comitê, aprovado pela Portaria nº 316 de 2023, é claro: o grupo deve se reunir ordinariamente a cada dois meses, o que totalizaria um mínimo de seis reuniões anuais. A realidade, porém, é bem diferente. O relatório aponta que, no site do Ministério das Mulheres, foram publicadas apenas duas atas de reunião: uma de 16 de outubro de 2023 e outra de 17 de novembro de 2023.

Desde então, não há registro de novas reuniões em 2024 e até o momento da publicação do relatório, em novembro de 2025. Essa situação levanta duas hipóteses, ambas graves. A primeira é que as reuniões não ocorreram, o que significaria um descumprimento direto do regimento interno e do próprio decreto que criou o pacto, demonstrando uma completa paralisia na governança. A segunda hipótese é que as reuniões ocorreram, mas as atas não foram publicadas, o que violaria o princípio da transparência, já que o regimento determina que as atas devem ser assinadas, encaminhadas aos membros e publicadas na página do Ministério.

Seja qual for o cenário, a conclusão é a mesma: o órgão que deveria ser o cérebro do pacto está inoperante ou atuando na obscuridade, impedindo qualquer tipo de monitoramento e ajuste das ações. Sem reuniões regulares, não há deliberação sobre como implementar o plano, não há discussão sobre os obstáculos encontrados e não há tomada de decisão para resolver problemas. O comitê se tornou um fantasma, existindo apenas no papel.

A Instabilidade Gerada pela Rotatividade de Pessoal:

Somando-se à falta de reuniões, o relatório destaca a rotatividade de pessoal em cargos-chave. Em junho de 2025, houve uma mudança na titularidade da Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres (SENEV), a instância do Ministério das Mulheres responsável pela coordenação do Comitê Gestor. Essa troca, que ocorreu logo após uma mudança na chefia do próprio ministério, tem um potencial de impacto negativo no andamento dos processos de acompanhamento do plano. A instabilidade em postos de liderança compromete a continuidade das políticas e a memória institucional, tornando ainda mais difícil a tarefa de tirar o pacto do papel.


Denúncia 10: A Caixa-Preta da Adesão dos Estados

O Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios foi concebido para ser uma política de cooperação federativa, dependendo da adesão e do compromisso de estados e municípios. No entanto, o relatório denuncia uma completa falta de transparência sobre quais entes federativos realmente aderiram ao pacto.

Dados Contraditórios e a Impossibilidade de Controle Social:

As informações divulgadas pelo próprio Ministério das Mulheres são contraditórias e confusas. O relatório compara os dados de duas épocas diferentes e encontra discrepâncias gritantes. Em novembro de 2024, o Ministério informou que 19 estados e o Distrito Federal haviam formalizado sua adesão. Em outubro de 2025, em audiência pública na CDH, dados do mesmo Ministério indicaram que 17 estados tinham aderido.

Ao cruzar as listas, o relatório revela uma situação caótica. Doze estados aparecem em ambas as listas. Oito entes federativos (Amazonas, Ceará, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Paraná, Rio Grande do Norte e Tocantins) que constavam como aderentes em 2024 não foram citados em 2025. Cinco estados (Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Roraima e São Paulo) que não estavam na primeira lista apareceram como aderentes em 2025.

Essa confusão de dados torna impossível saber a situação real. Houve desistências? Houve erros de comunicação? O relatório afirma que a ausência de transparência impede que a população local acompanhe e monitore seus gestores estaduais, fragilizando o exercício do controle social. Com informações claras, seria possível investigar as causas de uma eventual desistência e incentivar os estados que ainda não aderiram a fazê-lo. A falta de uma lista oficial, pública e atualizada das adesões transforma a governança federativa do pacto em uma verdadeira caixa-preta, minando a confiança e a colaboração entre os entes.


Denúncia 11: A Cultura do Machismo que Resiste à Mudança

Por fim, o relatório chega a um diagnóstico que, embora não seja novo, é fundamental: as ações de prevenção, da forma como estão sendo implementadas, não têm conseguido produzir uma mudança cultural suficiente para alterar o padrão histórico de violência contra a mulher no Brasil.

A Persistência de Normas Discriminatórias:

O documento destaca que normas sociais discriminatórias e práticas machistas continuam profundamente enraizadas na sociedade. A violência contra a mulher ainda é, para muitos, normalizada, justificada ou minimizada. Essa cultura do machismo é o solo fértil onde o feminicídio floresce. Enquanto a sociedade continuar a ver a mulher como propriedade do homem, enquanto o ciúme for romantizado e a agressão for tolerada, qualquer política de prevenção estará lutando contra uma maré de preconceitos.

O relatório aponta a necessidade de investimentos consistentes e de longo prazo em educação e campanhas de conscientização. É preciso atuar na raiz do problema, desconstruindo estereótipos de gênero e promovendo uma cultura de respeito e igualdade desde a infância. As estratégias de superação do machismo estrutural, segundo o documento, ainda são incipientes e não têm a escala necessária para provocar uma transformação real. Enquanto a cultura que tolera a violência não for confrontada de forma direta e contínua, qualquer política de prevenção será como enxugar gelo.


O relatório de avaliação do Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios é mais do que um documento técnico; é um grito de alerta. Ele revela um cenário desolador, onde uma política pública crucial, dotada de um orçamento bilionário, está paralisada pela ineficiência, pela falta de execução e por problemas de governança.

REQ 28-2025 – RELATORIO FINAL – AVALIAÇÃO DE POL PUB. FEMINICIDIO – MARA GABRILLI by Camila Abdo

As denúncias são um catálogo de falhas que se somam e se retroalimentam, criando um sistema de proteção que, na prática, não protege. A baixa execução orçamentária, a rede de atendimento desigual, a subnotificação massiva, a falta de profissionais capacitados, a desarticulação institucional, a negligência com a saúde mental, o racismo, a ineficácia das medidas protetivas, a governança inoperante, a falta de transparência e a persistência da cultura machista formam um quadro que exige uma resposta imediata e contundente.

As mais de 40 recomendações apresentadas no relatório, que vão desde a garantia do financiamento até a reestruturação da governança e o investimento em mudança cultural, apontam um caminho. No entanto, para que essas recomendações saiam do papel, é preciso vontade política e responsabilização. É preciso que os gestores públicos, em todas as esferas, sejam cobrados pela implementação efetiva do pacto.

O documento da Senadora Mara Gabrilli cumpre seu papel de fiscalização e joga luz sobre um problema grave. Cabe agora à sociedade civil, à imprensa e aos próprios órgãos de controle transformar essa denúncia em um ponto de virada. A vida de milhares de mulheres depende disso. O Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios não pode continuar a ser apenas uma promessa no papel. Ele precisa se tornar, urgentemente, uma realidade que salva vidas.

Artigos Relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo