Resenhas e Opinião

25 – Pssica: A Ficção Que Mostra Verdade de Marajó

“Pssica”, minissérie brasileira da Netflix, ambientada no Pará, une suspense, relatos reais e crítica social ao tráfico humano e à violência ribeirinha

Pssica – Sim, a senadora Damares estava certa o tempo todo. Na época, Damares Alves era ministra do Direitos Humanos na gestão Jair Bolsonaro (2019-2023) e fez severas denúncias de abuso sexual infantil e tráfico de crianças e adolescentes, mas a esquerda a calou. A acusaram de fake news, desinformação e a ex-ministra forá processada. Mas a verdade veio a tona….

Há momentos em que a cultura popular transcende o entretenimento e se torna um espelho, por vezes estilhaçado, da alma de uma nação. A estreia da minissérie “Pssica” na Netflix, em 20 de agosto de 2025, foi um desses momentos.

Em menos de 48 horas, a produção não apenas escalou ao topo do ranking de mais assistidos no Brasil, deixando para trás fenômenos como a aclamada “A Mulher da Casa Abandonada”, mas também reacendeu, com a força de um incêndio, um dos debates mais dolorosos e polarizados da história recente do país.

A obra, baseada no romance do escritor paraense Edyr Augusto, feito com relatos reais de meninas vítimas de abusadores e traficantes da Ilha, e conduzida pela visão cinematográfica de Fernando Meirelles e seu filho, Quico Meirelles, é um soco no estômago da indiferença. Seus quatro episódios nos esfrega na cara uma verdade sufocante que deixa uma certeza incômoda: a ficção, neste caso, é apenas a ponta do iceberg de uma realidade infinitamente mais perversa.

O título, “Pssica”, é uma palavra carregada de significado no Norte do Brasil. Ela evoca uma maldição, um azar que impregna a vida de uma pessoa, uma sina da qual não se pode escapar. Na série, essa maldição tem nome, rosto e uma beleza que se torna sua própria sentença: Janalice.

A trama, que se desenrola nos labirintos fluviais da Amazônia, é uma adaptação fiel ao espírito da obra de Edyr Augusto, um autor conhecido por sua literatura “noir amazônico”, que retrata a urbanidade decadente e a violência crua de Belém e seus arredores sem romantismo ou exotismo.

A ficção – não tão ficção assim – de Augusto, e agora a de Meirelles, é inspirada em “relatos colhidos em cidades do Pará, como Breves, Faro e Afuá, onde a lei não chega”. E é precisamente essa ausência, essa falha sistêmica do Estado, que serve de palco para o horror.

A história de Janalice é a crônica de uma queda vertiginosa. Após o vazamento de um vídeo íntimo — um ato de violência digital que serve como prelúdio para o horror físico —, ela é enviada para a casa de uma tia. O que deveria ser um porto seguro rapidamente se revela como o primeiro círculo do inferno.

O abuso vem de dentro de casa, perpetrado pelo namorado da tia, sob o olhar conivente da própria parente. Cansada de ser violentada e de assistir à degradação ao seu redor, Janalice foge em uma noite fatídica para encontrar uma amiga. É nesse instante de vulnerabilidade que a “pssica” a alcança de forma definitiva. Ela é sequestrada, tornando-se mais uma peça na engrenagem macabra do tráfico sexual que assola a região.

O que se segue é uma descida ao abismo. A série não desvia o olhar. Somos forçados a testemunhar o que acontece com Janalice e com as outras “meninas com cara de criança”, cinicamente apelidadas de “primeira linha” pelos criminosos que as exploram. Elas são transformadas em mercadorias, leiloadas em festas flutuantes para uma elite predatória composta por políticos, empresários e homens influentes, que pagam caro para consumir a inocência alheia.

A cada noite, um novo trauma, uma nova violação. A luta de Janalice, marcada por uma brutalidade quase documental, a leva até um prostíbulo na Guiana, um dos destinos finais para muitas das vítimas do tráfico humano na fronteira norte do Brasil. É lá, em solo estrangeiro, que um fio de esperança surge na figura de uma colombiana, ela mesma uma sobrevivente da violência endêmica da região, que a resgata.


A Arte Como Denúncia

Para entender o impacto sísmico de “Pssica”, é preciso retroceder no tempo. A narrativa da série não é uma invenção isolada; ela é o eco amplificado de denúncias que sacudiram o Brasil e expuseram suas fraturas ideológicas.

Entre 2020 e 2021, Damares Alves, então Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, fez uma série de declarações contundentes sobre a exploração sexual e o tráfico de crianças na Ilha de Marajó. Suas falas, que incluíam relatos de extrema violência, foram imediatamente politizadas. Setores da esquerda e parte da imprensa acusaram a ministra de fabricar ou exagerar os fatos para avançar uma agenda política conservadora, gerando um intenso debate sobre a veracidade e a intenção por trás das denúncias.

Anos depois, em fevereiro de 2024, a cantora gospel paraense Aymeê Rocha utilizou o palco de um reality show musical, o “Dom Reality”, para fazer um apelo desesperado. Com a voz embargada, ela cantou sobre a Amazônia que queima e as crianças que desaparecem, e em um discurso que viralizou, falou sobre a prostituição infantil por cinco reais e o tráfico de órgãos em Marajó.

A reação foi instantânea e, novamente, polarizada. Enquanto uma onda de solidariedade e indignação tomava as redes sociais com a hashtag #JusticaPorMarajo, Aymeê, assim como Damares, foi alvo de uma campanha de descrédito. Críticos argumentaram que suas falas eram sensacionalistas e descontextualizadas, estigmatizando a população local e servindo a interesses políticos.

“Pssica” chega neste cenário conflagrado e, com a força de sua narrativa visual, parece dar um veredito. A série, ao dramatizar o tráfico de “meninas que cheiram a leite” para “animar” leilões e festas de políticos, valida a essência das denúncias que foram tão ferozmente contestadas. Ela se recusa a tratar o tema como uma abstração política e, em vez disso, dá-lhe um rosto, uma história e uma dor palpável. A produção de Meirelles levanta, assim, uma questão fundamental: por que houve, e ainda há, uma resistência tão grande em acreditar na profundidade dessa tragédia?

A polêmica em torno de “Pssica” espelha a que envolveu o filme “O Som da Liberdade” (Sound of Freedom) em 2023. O longa, que narra a história de um ex-agente americano combatendo o tráfico infantil na Colômbia, foi um sucesso de bilheteria impulsionado por um público conservador e religioso, mas foi recebido com desconfiança pela crítica e associado a teorias da conspiração da extrema-direita.

Os críticos do filme foram acusados de serem coniventes com a pedofilia, enquanto os defensores foram taxados de manipuladores. A mesma dinâmica maniqueísta ameaça agora sequestrar o debate sobre “Pssica”. A série será vista como uma obra de arte que denuncia uma crise humanitária ou será reduzida a mais uma arma na guerra cultural que divide o Brasil?


A Máquina De Moer Gente:
Tráfico Humano, Ratos-D’Água E A Economia Do Crime

O arco da busca por Janalice é um convite para acompanhar a logística criminosa que opera nos bastidores: o aliciamento, o transporte por rotas fluviais, os atravessadores, a desumanização das vítimas, a cumplicidade de atores locais e a indiferença de autoridades que aparecem apenas como rumores ou obstáculos pontuais.

“Pssica” recusa o conforto de um maniqueísmo televisivo: há crueldade e há estratégia, há oportunismo e há medo, e a vida custa caro. A série acerta quando evita transformar tudo em espetáculo elegante. Não há redenção fácil; há escolhas e custos.

Esse retrato, ilustrado por fontes críticas e jornalísticas, é uma das razões pelas quais a minissérie foi apontada como um “faroeste amazônico” por análises recentes: uma terra onde a lei é intermitente, onde as corredeiras e os furos de rio substituem as rodovias, e onde a disputa por rotas, cargas e pessoas lembra um duelo permanente com réguas novas.


O Norte Como Centro:
Cartografia Moral E Política Da Amazônia De Hoje

“Pssica” é contundente por colocar no coração do conflito não apenas os bandidos e as vítimas, mas o ecossistema que tolera a engrenagem: descaso público, conivência privada, economia paralela que se infiltra no cotidiano, a precariedade de serviços essenciais, o peso da pobreza estrutural, o machismo que atravessa todas as violências.

Quando se fala em “maldição” no contexto amazônico da série, não se aponta o dedo para o misticismo como explicação mágica, mas como linguagem cultural para nomear o ciclo de abusos que parece sempre pronto a recomeçar.

Ao escolher uma protagonista adolescente raptada para exploração sexual, a minissérie expõe o quão lucrativa é a mercantilização de corpos vulneráveis. Ao escolher um assaltante fluvial que joga dos dois lados, expõe a linha tênue entre sobrevivência e barbárie. Ao escolher uma mãe movida por vingança, coloca em cena a justiça que nasce do desespero, quando as instituições falham. Essas engrenagens mostram que ali não há “casos isolados”: há estrutura. E isso importa.


A Realidade por Trás da Ficção: Marajó em Números

Se a história de Janalice é uma ficção que choca, os dados oficiais da Ilha de Marajó confirmam que a realidade é um filme de terror contínuo. A violência no arquipélago, o maior fluviomarítimo do planeta, não é um acidente, mas uma condição estrutural, alimentada pela pobreza extrema, pelo isolamento geográfico e pela ausência crônica do Estado.

As estatísticas são um retrato desolador de uma catástrofe humanitária em câmera lenta:

  • 1.094 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes foram oficialmente registrados no arquipélago entre 2018 e 2022. Desse total, a esmagadora maioria (84,84%) foi de estupro de vulnerável. É crucial lembrar que, segundo especialistas, os números oficiais representam apenas a “ponta do iceberg”, com estimativas de que menos de 10% dos casos de estupro no Brasil cheguem a ser denunciados.
  • Em 2022, o Ministério Público do Pará (MP-PA) abriu 550 processos por crimes contra crianças e adolescentes na região, o que equivale a uma média de 1,5 novo caso por dia. Em apenas 48 dias no início de 2024, foram registrados 40 novos casos.
  • A taxa de estupro de vulnerável em Marajó atinge a marca de 69 casos por 100 mil habitantes, um número que é 2,5 vezes maior que a média nacional de 28 casos por 100 mil habitantes.
  • A exploração não é um problema novo. Investigações sobre pedofilia e exploração sexual na região ocorrem oficialmente desde 2006, e o tema já foi objeto de múltiplas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) no Congresso Nacional, como a CPI da Pedofilia em 2008.

A geografia é cúmplice. O labirinto de rios, furos e igarapés que compõe o arquipélago dificulta a fiscalização e cria rotas perfeitas para a ilegalidade. A fronteira com a Guiana, porosa e mal vigiada, serve como porta de saída para vítimas e rota de entrada para o crime.

Em junho de 2025, uma diligência da Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado, liderada pela própria Damares Alves, esteve na região para investigar denúncias de desaparecimento de crianças. Os relatos colhidos foram de arrepiar: crianças que simplesmente somem, como a pequena Elisa, desaparecida aos dois anos, cuja mãe foi ameaçada por supostos traficantes que exigiam outra criança em troca de sua devolução.

A pergunta que ecoa nas margens dos rios e nos corredores do poder é a mesma que a minissérie “Pssica” nos obriga a fazer: por que é tão difícil proteger as crianças de Marajó?


A Estética da Brutalidade

A força de “Pssica” reside não apenas em sua temática, mas em sua execução. Fernando Meirelles, cineasta que alcançou renome internacional com “Cidade de Deus”, retorna ao universo da violência urbana e social com a mesma crueza e urgência que marcaram sua carreira.

Em parceria com seu filho Quico, ele constrói uma atmosfera sufocante, onde a beleza estonteante da paisagem amazônica contrasta com a feiura das ações humanas. Os rios, que deveriam ser fonte de vida, são transformados em artérias do crime, corredores de pirataria, assaltos e sequestros. A câmera de Meirelles não embeleza, ela expõe.

A minissérie, portanto, se torna mais do que uma adaptação. Ela é um ato de tradução cultural, levando a “pssica” — essa maldição simbólica da inevitabilidade da tragédia — para um público global. No Marajó real, a violência não é uma metáfora; é a rotina. Falta-lhe, no entanto, a visibilidade que a arte pode proporcionar. “Pssica” empresta seus holofotes para essa escuridão.

A questão que permanece, pairando no ar após o fim do último episódio, é se a comoção gerada pela série se converterá em ação efetiva. A indignação nas redes sociais é volátil. As promessas políticas são, muitas vezes, efêmeras. A série conseguiu o mais difícil: fazer o Brasil olhar para si mesmo, para uma de suas feridas mais purulentas.

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