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29 – Tráfico Humano no Amapá

Tráfico humano no Amapá: rotas via Oiapoque, casos chocantes, operações policiais e verba desviada que barraria crimes contra crianças e adolescentes

Tráfico Humano no Amapá – Exclusivo: bastidores do tráfico de pessoas no Amapá, subnotificação, fronteira porosa e a controvérsia dos R$ 48 milhões para segurança pública.

Autor: Camila Abdo | Revisor e Corretor: Edilson Salgueiro (@salgueiro_jr)

Nota importante: a reportagem a seguir baseia-se nos testemunhos exclusivos e detalhados de fontes do alto escalão do sistema de Justiça e outras pessoas que atuam na região. Por razões de segurança, suas identidades serão mantidas em absoluto sigilo.

Foto: Comunicação Social da Polícia Federal no Amapá

O Estado do Amapá, uma joia verde cravada no extremo norte do Brasil, guarda em suas vastas extensões de floresta e em seus rios sinuosos uma realidade alarmante e persistente.

Com uma fronteira porosa de mais de 700 quilômetros com a Guiana Francesa e o Suriname, a região consolidou-se ao longo de décadas como um corredor estratégico para uma das mais graves violações de direitos humanos: o tráfico de pessoas.  Essa atividade criminosa pulsa na vida de comunidades inteiras, explorando a vulnerabilidade de homens, mulheres e, com especial crueldade, crianças e adolescentes.

A promessa de uma vida melhor, muitas vezes a poucos quilômetros de distância em território europeu, torna-se a isca perfeita para uma armadilha de exploração.

Em 2024, R$ 48 milhões foram destinados à segurança pública do Amapá por meio de uma emenda de bancada aprovada na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Entre os projetos acordados estava a construção de um novo Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), voltado para o combate aos crimes praticados contra crianças e adolescentes.

Seria a primeira delegacia customizada do Estado, planejada para estruturar o maior sistema de repressão à pedofilia já implantado na região. O valor previsto era de R$ 5,5 milhões apenas para a unidade. No entanto, após a cassação da deputada federal Sílvia Waiãpi (PL-AP), que havia destinado os recursos, a iniciativa fracassou.

No entanto, após a cassação da deputada que destinou os recursos, a nova bancada se reuniu e, sob silêncio generalizado, desviou o dinheiro que seria aplicado na segurança pública.

O montante, que incluía justamente as verbas para combate e repressão a agressões contra crianças e adolescentes, acabou realocado para outros projetos dos deputados e senadores.

A denúncia sobre o desvio dos R$ 48 milhões foi levada ao Ministério Público Federal, que encaminhou uma recomendação à Procuradoria-Geral da República. Até agora, não houve resposta.

Enquanto isso, aproxima-se o fim do prazo para qualquer remanejamento dos recursos, o que significa, na prática, que o estado perderá definitivamente o investimento planejado para enfrentar um dos crimes mais cruéis que vitimam crianças e adolescentes no Amapá.

O projeto previa ainda o repasse de R$ 3 milhões para a estrutura. Depois que o governador, Clécio Luís (anteriormente era do PSOL, hoje é do Solidariedade), vetou a proposta, e após o anúncio público desse veto, Sílvia Waiãpi, deputada responsável pela articulação do projeto, foi cassada por mostrar a verdade do que está acontecendo no Amapá.

https://www.instagram.com/clecioluis_/?hl=pt-br

A deputada federal foi perseguida e ameaçada por trazer a público as entranhas da perversidade do tráfico humano, com enfoque em crianças.

Em seguida, o deputado federal Dorinaldo Malafaia e o senador Randolfe Rodrigues anunciaram que destinariam R$ 3 milhões cada um para equipar o CTI — R$ 6 milhões no total. Mas o equipamento nunca chegou. Segundo moradores do Oiapoque, o CTI permanece vazio até hoje, sem condições de funcionamento. As promessas, ao que tudo indica, ficaram apenas no discurso.


Tráfico Humano no Amapá – A cultura da exploração

Para compreender o tráfico de pessoas no Amapá, é imperativo analisar o terreno onde esse tipo de crime floresce. A exploração humana não é um evento isolado, mas sim o sintoma de uma série de fragilidades estruturais. O Estado, apesar de suas riquezas naturais, apresenta indicadores socioeconômicos que revelam um cenário de desigualdade e falta de oportunidades. Esses fatores resultam em um ambiente propício para a ação de aliciadores.

De acordo com dados do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, o Amapá possuía em 2021 um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) de 0,688, classificado como “Médio”. Esse número representa uma queda, em relação a 2019, quando o índice era de 0,737. Na prática, houve deterioração nas condições de vida da população.

A renda per capita mensal em 2021 era de apenas R$ 451,27, valor que também apresentou uma queda, de 8,71%, em relação ao ano anterior. Esse cenário de baixa renda é um dos principais motores da vulnerabilidade. Quando as necessidades básicas não são atendidas, a promessa de um emprego, mesmo que em condições duvidosas, torna-se uma alternativa atraente.

Os números da pobreza são ainda mais alarmantes. Em 2021, 28,43% da população do Amapá vivia em situação de pobreza, e o mesmo porcentual se encontrava em extrema pobreza. Quase metade da população, 47,5%, era considerada vulnerável à pobreza.

O Índice de Gini, que mede a desigualdade de renda, era de 0,53 em 2021 — patamar considerado alto, que reflete a grande concentração de riqueza e a disparidade no acesso a recursos e serviços. Embora o Estado tenha registrado uma notável queda na taxa de pobreza extrema entre 2022 e 2023, a base de vulnerabilidade permanece ampla e profunda.

É nesse contexto que o perfil das vítimas se desenha. Nacionalmente, dados do Disque 100 revelam que crianças, adolescentes e mulheres compõem 75% das vítimas de tráfico de pessoas.

Globalmente, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) mostra que 65% das vítimas são mulheres e meninas, e a exploração sexual é a finalidade em 50% dos casos. No Amapá, essa realidade se confirma.

O Amapá convive com um cenário gravíssimo de tráfico humano, agravado por subnotificações que se conectam diretamente às ilhas do arquipélago do Marajó. As duas regiões se entrelaçam porque o estado amapaense acaba realizando a assistência de saúde de muitas famílias que migram para a região em busca de atendimento.

Jovens vítimas de estupro e abuso sexual chegam ao Amapá para dar à luz, e essas crianças, nascidas já em contexto de violência extrema, acabam inseridas em uma rota que se tornou conhecida pelos órgãos de investigação: a rota do tráfico humano.

A partir do Amapá, crianças, adolescentes e mulheres são levadas até Oiapoque e, de lá, seguem para o Suriname ou para a Guiana Francesa. Casos recentes levaram à prisão de empresários e até políticos envolvidos na compra de meninos de dois anos, especialmente para práticas de abuso sexual e zoofilia.

“Inclusive, algumas pessoas foram presas, alguns empresários, inclusive políticos, por traficarem meninos de dois anos, comprarem crianças de dois anos, meninos em especial, para abuso sexual e zoofilia, sexo com animais.”, denuncia uma das fontes para a reportagem.

https://secbea.amapa.gov.br/noticia/2605/pf-cumpre-mandados-a-investigados-por-abusos-sexuais-envolvendo-criancas-e-animais

Os aliciadores miram em jovens de comunidades periféricas e rurais, onde a falta de perspectiva de futuro, a baixa escolaridade e a desestruturação familiar criam a tempestade perfeita. A promessa de um salário em euros na Guiana Francesa, de um casamento com um estrangeiro ou de um emprego em grandes centros urbanos do Brasil são iscas comuns utilizadas para atrair as vítimas.


As rotas da exploração na fronteira norte

A extensa e muitas vezes impenetrável fronteira do Amapá é o principal fator que torna o Estado um território fértil para o crime organizado.

O município de Oiapoque, banhado pelo rio de mesmo nome que o separa da cidade de Saint-Georges, na Guiana Francesa, é o epicentro dessa dinâmica. As duas cidades funcionam como um portal de entrada e saída, onde a legalidade e a ilegalidade se confundem no fluxo contínuo de pessoas e mercadorias.

Investigações da Polícia Federal e de outras forças de segurança revelam um modus operandi recorrente. As “catraias”, pequenas embarcações a motor que fazem a travessia do Rio Oiapoque em poucos minutos, são o principal vetor para o transporte clandestino de pessoas.

Em terra, do lado brasileiro, os chamados “picapeiros” ou “piratas” assumem o controle, conduzindo as vítimas por estradas de terra e asfalto que cortam o Estado, como a BR-156, muitas vezes em condições precárias e sob constante ameaça. A Operação Piratas do Caribe, deflagrada em setembro de 2025, expôs a brutalidade desse sistema.

https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/operacao-piratas-do-caribe-desarticula-rede-de-contrabando-de-migrantes-no-amapa

A investigação revelou como migrantes, principalmente cubanos e haitianos, eram extorquidos e coagidos a pagar valores exorbitantes pelo transporte entre Oiapoque e a capital, Macapá.  Aqueles que se recusavam a pagar eram intimidados com a possibilidade de serem entregues às autoridades e expulsos do país, uma ameaça potente para quem já se encontra em situação de extrema vulnerabilidade.

O aumento exponencial no número de migrantes registrados pela Polícia Federal em Oiapoque nos últimos anos ilustra a intensificação do uso dessa rota: de apenas 11 pessoas em 2021, o número saltou para 8.204 em 2024, e mais de 6.600 apenas nos primeiros oito meses de 2025. Esses números, embora expressivos, representam apenas a parcela visível de um fluxo muito maior, que inclui aqueles que entram e saem do país sem nenhum registro oficial. Para muitos, o Brasil é apenas uma etapa na longa e perigosa jornada em direção aos Estados Unidos.

Contudo, as rotas não se limitam ao contrabando de migrantes. Elas são as mesmas vias utilizadas para a exploração sexual, o trabalho análogo à escravidão e outras finalidades. As vítimas são levadas do Amapá para outras partes do Brasil ou, mais comumente, para o exterior.

De acordo com uma fonte consultada pela reportagem, o tráfico humano infantil acontece em toda a região. “Falta estrutura, transporte, internet, salário digno e até segurança para os conselheiros que tentam proteger nossas crianças”, denuncia. “Sem condições adequadas de trabalho, os seguranças acabam de mãos atadas diante de crimes tão graves. É preciso investir, dar subsídio e garantir que esses profissionais tenham força e meios para agir.”

O informante explica que mora na região do Anajás e se indigna com a omissão das autoridades sobre tudo o que acontece na região. “O tráfico humano infantil ainda acontece por aqui”, conta. “Não é história inventada, é a dura realidade. Já soubemos de uma criança vendida por apenas mil reais — valor que mal paga uma compra no mercado, mas que foi usado para negociar uma vida.”

A fonte alerta para a pobreza e para o abandono do poder público. “As causas desse cenário são visíveis para quem vive aqui: o baixo IDH, a pobreza extrema e o abandono histórico do governo”, resume. “O Marajó parece esquecido pela União, como se nossas vidas valessem menos por estarmos isolados entre rios e florestas.”

A falta de políticas públicas efetivas enfraquece os órgãos de segurança e deixa as famílias vulneráveis, acrescenta a fonte. “É preciso investir, dar subsídio e garantir que esses profissionais tenham força e meios para agir”, afirma. “Além disso, o combate ao tráfico e à exploração sexual infantil exige leis mais duras contra pedófilos e traficantes. Precisamos de um cadastro nacional desses criminosos, para que não continuem agindo livremente de cidade em cidade. O Judiciário também precisa ser mais ágil nesses casos, pois cada dia de demora pode significar mais uma criança perdida.”


As faces da exploração

Um dos casos mais emblemáticos, que resultou em condenação em setembro de 2025, ilustra a crueldade e a proximidade dos aliciadores. Uma mulher foi condenada a cinco anos de prisão por traficar a própria irmã, uma adolescente de apenas 15 anos.

O crime ocorreu em 2011, quando a jovem foi convidada a se mudar para Oiapoque com a promessa de um emprego.

Ao chegar, foi levada clandestinamente para a Guiana Francesa e forçada a se prostituir por sete meses em um cabaré que pertencia à irmã. A vítima viveu sob violência e grave ameaça até conseguir escapar. A sentença, proferida pela Vara Federal de Oiapoque, destacou a “habitualidade” da prática criminosa da ré, que já mantinha um estabelecimento voltado à exploração de menores no país vizinho.

Outro aspecto desse crime é o trabalho análogo à escravidão. Embora com menos registros formais, os casos que vêm à tona revelam a existência de redes que exploram a mão de obra em condições degradantes, principalmente em atividades como o garimpo ilegal e a agropecuária.

Em um período de dois anos, o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP) do Amapá registrou a denúncia de dois homens paraenses que fugiram para o Estado após serem explorados em fazendas, um em São Paulo e outro no próprio Pará. Eles buscaram ajuda no Amapá.

As comunidades indígenas, com sua vulnerabilidade histórica e social, são um dos alvos preferenciais dos traficantes. A Operação Arapuca, iniciada em 2023, desvendou um esquema em Oiapoque onde uma mulher indígena era mantida em cárcere privado e forçada a se prostituir para pescadores da região.

https://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2023/12/23/suspeitos-de-aliciamento-de-menores-indigenas-sao-presos-pela-policia-federal-em-oiapoque-no-ap.ghtml

A investigação revelou que os criminosos se aproveitavam da vulnerabilidade social e cultural para aliciar e explorar menores de idade, trocando seus corpos por pequenas quantias ou bens de consumo. A continuidade da exploração ficou evidente com a deflagração da Operação Arapuca 2, em 2025, que prendeu novamente os mesmos criminosos por reincidirem na prática, demonstrando a audácia e a sensação de impunidade que permeiam a região.

https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/policia-federal-prende-dois-suspeitos-por-trafico-de-pessoas-no-amapa

De acordo com uma das fontes, ligada ao Judiciário do Amapá, Silvia Waiãpi encaminhou emendas para os 16 municípios que existem na região. No total, são 18 conselhos tutelares — um para cada município e três na capital. Apenas cinco aderiram ao programa de proteção da criança.

“Na realidade, não existe política de proteção à criança na Região Norte”, diz a fonte. “Ela é dificultada. E aí não existe nenhuma mobilização do Ministério dos Direitos Humanos para dirimir esse problema.”


Prisão e impunidade

Em 2024, no mês de abril, a Polícia Federal deflagrou a Operação Ilusão, que teve como objetivo identificar um esquema de tráfico de pessoas na fronteira entre Brasil e Guiana Francesa.

Entre os presos estavam duas mulheres, mãe e filha, que seriam responsáveis por selecionar crianças e adolescentes do sexo feminino, em Oiapoque, e oferecer empregos para as vítimas em um garimpo, supostamente localizado na Guiana Francesa.

Durante a investigação, a polícia identificou que, quando as vítimas chegaram à região de garimpo, eram levadas para atuar nas casas de prostituição. Não há notícias se elas foram julgadas e condenadas por tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual.

https://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2024/04/16/pf-investiga-esquema-de-trafico-de-pessoas-na-fronteira-entre-brasil-e-guiana-francesa.ghtml

Em 18 de dez de 2024, o vereador Zeca Abdon, de 78 anos, foi preso acusado de exploração sexual infantil pela Operação da Polícia Federal “Iuvenes” que atingiu as regiões de Macapá, Santana e Vitória do Jari.Semanas depois o vereador foi “punido” com prisão domiciliar e hoje está foragido.

Já em agosto de 2025, uma mulher foi presa, suspeita de recrutar mulheres para engolirem drogas e levar para a Europa.


A vulnerabilidade social

A engrenagem do tráfico humano na região se aproveita de uma forte conexão social e de saúde entre o Amapá e o Arquipélago do Marajó, no Pará.

Mulheres e jovens paraenses, muitas delas grávidas em decorrência de abusos sexuais, migram para o Amapá em busca de assistência médica. É nesse contexto de vulnerabilidade que crianças recém-nascidas, adolescentes e as próprias mulheres são capturadas pela rede criminosa.

“O Amapá faz assistência de saúde porque muitas dessas famílias migram para cá”, relata uma das fontes. “Então, muitas dessas jovens vão ter bebê aqui, que são frutos de estupro, frutos de abuso sexual. Essas crianças nascem no Amapá. E o Amapá é a rota do tráfico humano.”


Denúncias contra prefeitos:

A deputada federal ao ser informada que as emendas não chegaram ao destino proposto e não houve a adesão ao programa de Proteção a Criança, denunciou 11 prefeitos da região do Amapá.

Segundo documentos, Silvia notificou todos os prefeitos e requiriu os nomes dos agentes públicos e dos secretários que ocupavam a função e estavam sendo acusados de negligência e para resolverem o problema antes de serem denunciados.

Até o presente momento nenhum prefeito ou secretario respondeu a solução da parlamentar, ensejando assim a denúncia contra eles.

“Como nenhum desses prefeitos respondeu, Silvia denunciou os 11 prefeitos na Procuradoria do Estado.”, explica. “Nenhum prefeito respondeu, nenhum prefeito, eles simplesmente acobertaram o erro e o erro do seu funcionário.”, lamentou a fonte.

Quando questionado sobre as ações adotadas e executadas, o informante afirma que os cinco munícipios que aderiram ao programa ainda não receberam o carro que o Ministério dos Direitos Humanos tinha que comprar.

“Os cinco municípios que aderiram ao programa até hoje não receberam um carro que o Ministério de Direitos Humanos tinha que comprar. Eles simplesmente não repassaram.” E completa: “O Ministério de Direitos Humanos também negligência a proteção das crianças da região amazônica.”

De acordo com outra fonte consultada, este do alto escalão do Judiciário local, a deputada conseguiu uma parceria com o Tim Ballard – que teve sua trajetória contada no filme “O som da liberdade” e conhecido pelo ativismo contra o tráfico infantil – para doar um carro para a região de Oiapoque.

O informante classifica como “muito ruim” a legislação vigente e denuncia o descaso das autoridades

“A legislação é muito ruim, porque na região norte, os municípios eles não arrecadam e não têm como eles manterem os conselhos tutelares. Porque os conselhos tutelares precisam fazer fiscalização. Se não tem combustível, se não tem carro, como vão conseguir fazer.”, explica.

Ao ser questionado sobre o resultado das denuncias, ele lamenta que ainda não tiveram nenhuma resposta:

“Como nenhum dos prefeitos respondeu, ela denunciou esses prefeitos ao Ministério Público. E, até agora, ela não obteve resultado, né? Eu não sei se eles responderam ao Ministério Público.”


Verba de R$ 48 milhões desviada

Verba de R$ 48 milhões, inicialmente destinada ao reforço da segurança pública no Amapá, foi desviada para outras finalidades em meio a denúncias relacionadas ao tráfico de crianças, adolescentes e mulheres no estado. A região é considerada uma rota estratégica para redes criminosas que atuam no envio de vítimas para o Suriname e a Guiana Francesa, cenário que torna o desvio ainda mais grave.

O montante havia sido aprovado por meio de uma emenda de bancada e previa investimentos diretos na construção e no completo aparelhamento de uma Delegacia Especializada na Repressão a Crimes Praticados Contra Crianças e Adolescentes (DEIC).

Avaliado em R$ 5,5 milhões, o projeto seria o primeiro do estado totalmente estruturado para combater crimes de pedofilia e exploração sexual. No entanto, após uma reconfiguração na bancada federal do Amapá, os recursos foram redirecionados para outras áreas.

A alteração na destinação da verba motivou uma denúncia ao Ministério Público Federal, que emitiu uma recomendação e encaminhou o caso à Procuradoria-Geral da República (PGR). Até o momento, não houve manifestação conclusiva da PGR.

Com o prazo para movimentações orçamentárias chegando ao fim — entre o final de novembro e o início de dezembro — há o risco de que os recursos sejam definitivamente perdidos para a segurança pública, comprometendo os esforços para intensificar o combate aos crimes contra crianças e adolescentes no Amapá.


Filmes de terror

Maria Clara Caripuna

O assassinato brutal da jovem Maria Clara Caripuna sintetiza essa cadeia criminosa. Estuprada, afogada na lama e levada ao hospital em um município que abriga dois hospitais de alta tecnologia para animais, mas nenhum CTI para seres humanos, a jovem tornou-se símbolo de um Estado que negligencia indígenas, pobres e vulneráveis.

“A deputada Sílvia Waiãpi destinou R$ 3 milhões para que um CTI do Hospital do Oiapoque fosse equipado”, diz uma das fontes. “Isso se deu pelo caso da morte da Maria Clara Caripuna. Então, a parlamentar destinou R$ 3 milhões para equipar o CTI de Oiapoque, para que a comunidade local tivesse todo o atendimento necessário.”

Segundo a deputada, o governador do Amapá, Clécio Luiz, vetou a homenagem a construção de um CTI com o nome de Maria Clara Caripuna.


Bebê de 51 dias

Em junho de 2023, um bebê de somente 51 dias foi abusado sexualmente pelo próprio avô, de 71 anos. Ele foi preso em flagrante pela Polícia Civil.

https://sema.portal.ap.gov.br/noticia/1306/em-macapa-idoso-que-abusou-sexualmente-de-uma-bebe-de-51-dias-de-vida-e-preso-em-flagrante-pela-policia-civil

Segundo um policial, ele tentou ajudar a família com o apoio da Silvia Waiãpi, mas o trauma intrafamiliar foi tão grande que a mãe abandou a família e o pai colocou as crianças para adoção. De acordo com o policial, a mãe e o pai da vítima também foram abusados quando eram crianças, demonstrando assim que isso é uma realidade presente há muitos anos.

“A desestrutura foi completa depois desse abuso sexual da menina que a mãe abandonou a família. Abandonou a criança. O pai sem condições de cuidar das duas crianças. Deu os dois filhos.”.


Caso Estephani

Estephani foi raptada, torturada, estuprada e morta aos 7 anos de idade em Mazagão, a 70 quilômetros de Macapá. Foi a partir deste caso que a Waiãpi começou a lutar pela proteção e direito das crianças.

Segundo o conselheiro tutelar da região Silvia recebeu uma foto de uma menina de 07 anos, de nome Estephani.

“Depois que ela tomou posse, foi localizá-los, ela foi atrás dessa família. Chegou numa casa, falou com a avó e ela falou: olha, eu só tenho a foto da menina morta. A senhora podia me dar uma foto dela em que ela estivesse viva? Quando ela [a avó] trouxe a foto, não era a mesma criança”, diz o conselheiro.

Ainda de acordo com a fonte, os crimes contra crianças na região pareciam que eram feitos por uma única pessoa, mas após investigação foi comprovado que eram diversos homens.

“Os crimes e os abusos sexuais, de sequestro, assassinato dessas crianças, eles aconteciam parecendo que era assassino em série, mas não era. Era o mesmo modus operandi, mas de assassinos diferentes, como se fosse um rito naquele município onde as crianças são abusadas sexualmente. Ela foi em cinco casas. E nas cinco casas, as crianças haviam sido mortas, estupradas, jogadas fora.”

https://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/pericia-confirma-estupro-em-menina-de-7-anos-achada-morta-no-interior-do-ap.ghtml

A resposta do Estado

O combate ao tráfico de pessoas no Amapá tem se intensificado nos últimos anos, com a realização de diversas operações integradas entre as forças de segurança.

A Polícia Federal, com apoio da Polícia Civil, do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e do Grupo Tático Aéreo (GTA), tem atuado para desarticular as organizações criminosas que operam na fronteira. A tabela abaixo resume as principais ações recentes:

OperaçãoAnoFoco PrincipalResultados Notáveis
Arapuca2023Exploração sexual de indígenas em OiapoquePrisão de 3 suspeitos; revelou esquema de cárcere privado e prostituição forçada.
Ilusão2024Tráfico de menores para prostituição na Guiana FrancesaInvestigação sobre mãe e filha que aliciavam meninas com falsas promessas de emprego.
Arapuca 22025Reincidência de crimes da Operação ArapucaPrisão de 2 dos suspeitos anteriores, que voltaram a atuar no tráfico e na venda ilegal de armas.
Piratas do Caribe2025Contrabando e extorsão de migrantesDesarticulação de rede que cobrava valores abusivos de cubanos e haitianos no trajeto Oiapoque-Macapá.
Integrada Oiapoque2025Combate a facções criminosas na fronteiraCumprimento de 10 mandados de prisão e busca e apreensão contra lideranças de facções.

A Operação Alcateia, deflagrada pela Polícia Federal em 17 de maio de 2023, expôs um cenário brutal de exploração sexual infantil no Amapá. Por trás do nome que sugere uma força coordenada, a investigação revelou uma teia de abusos que envolvia armazenamento, compartilhamento e produção de imagens de violência sexual contra crianças, algumas aindas, e até indícios de práticas que envolvem animais domésticos. O caso chocou o país naquele maio de 2023, mas, à medida que os meses passaram, caiu em um silêncio quase absoluto.

A investigação apontou para a existência de um grupo articulado, que se comunicava entre si, compartilhava estratégias, trocava arquivos de abuso sexual e discutia logística para a produção de novos materiais. As conversas analisadas pela PF sugeriam que os integrantes ofereciam imóveis, veículos ou espaços onde os abusos poderiam ocorrer. Em determinados momentos, segundo fontes investigativas, membros do grupo criminoso chegaram a abordar mulheres de rua, que estavam acompanhadas de filhos pequenos, para oferecer dinheiro em troca de acesso às crianças.

Assim como ocorre em praticamente todas as investigações que envolvem menores vítimas de crimes sexuais, os autos foram colocados em sigilo integral imediatamente após a operação. A justificativa jurídica é sólida, baseada no Estatuto da Criança e do Adolescente, que determina segredo absoluto em casos de pornografia infantil ou estupro de vulnerável, e na Lei de Organizações Criminosas, que autoriza o sigilo para preservar a investigação e proteger vítimas e testemunhas.

Na teoria, trata-se de uma medida necessária. Na prática, cria um apagamento institucional. Depois da divulgação inicial feita pela PF, não houve nenhuma atualização pública sobre o caso. Nenhum comunicado informou se houve denúncia, condenação ou libertação dos investigados. Não houve esclarecimentos sobre o número total de vítimas, sobre a extensão da rede criminosa ou sobre o destino das pessoas presas na ação. Nenhum relatório final foi tornado público, mesmo que de maneira anonimizada.

O direito à informação

O sigilo judicial em casos de violência sexual infantil é imperativo legal. Ele impede a exposição das vítimas, evita revitimização, preserva provas sensíveis e bloqueia o acesso de criminosos a detalhes da investigação. Contudo, ao impor o sigilo total, o Brasil perde a oportunidade de seguir modelos internacionais que conciliam proteção com transparência institucional.

Países desenvolvidos adotam sentenças anonimizadas, relatórios públicos sem identificação de vítimas, comunicados oficiais com estatísticas consolidadas e divulgam periodicamente os resultados de investigações contra exploração infantil. Esses mecanismos permitem que a sociedade acompanhe o desempenho institucional sem violar o direito à privacidade das vítimas.

No Brasil, o sigilo costuma ser tratado como silêncio. E o silêncio se transforma em ausência de controle social. Assim, o público não sabe se os investigados foram denunciados, absolvidos ou condenados, não conhece a quantidade total de vítimas identificadas, não sabe se havia participação de figuras públicas ou conexões com outros Estados e tampouco sabe se há risco ainda vigente para menores.


O papel de Silvia Waiãpi

A reportagem perguntou a uma das fontes próximas à deputada quais foram as ações dela em relação às denúncias da região. Segundo a fonte, a parlamentar apresentou o Projeto de Lei 2.144/2023, que visa a aumentar a pena para abusadores sexuais de vulneráveis e de crianças.

O texto, aprovado por unanimidade na Câmara, está parado na Comissão de Constituição e Justiça por culpa de Davi Alcolumbre que era presidente da Comissão na época.

“A presidência [da CCJ] era justamente dele [Alcolumbre], então de lá em diante a responsabilidade por cada criança abusada nessa região, na região Norte, na Amazônia, é da CCJ e quem era o presidente? Davi Alcolumbre.”, diz a fonte em tom de revolta.

A deputada tentou recorrer a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outros agentes públicos para garantir a execução da lei, mas ainda não recebeu resposta.

“Ela procurou envolver todos, todos os agentes públicos, todas as instituições, para que todos se mobilizassem e se responsabilizassem pela proteção das crianças, inclusive a OAB”, explica o informante.

https://www.oabap.org.br/noticias/oab-ap-reforca-compromisso-no-combate-a-crimes-contra-criancas

Um conselheiro tutelar da região diz que Silvia Waiãpi assumiu a missão de proteger as crianças da região quando recebeu uma foto de uma menina, de 7 anos, chamada Estephani, que havia sido raptada, estuprada, torturada e assassinada.

“Mas quem realmente deu o start foi a família da menina, pai e mãe”, diz o conselheiro. “Quando alguém enviou a foto da filha deles para Silvia, pedindo ajuda, começou a força-tarefa.”

O criminoso confessou o crime, mas, por ser menor de idade, ganhou liberdade quando completou 18 anos.


A parceria entre Silvia Waiãpi e Tim Ballard

Em julho de 2025, a deputada federal anunciou novas ações para combater crimes contra crianças na Amazônia. De acordo com a matéria do site “Congresso Em Foco”, a parlamentar confirmou que o Amapá será o Estado responsável por sediar a operação brasileira da Operation Underground Railroad (OUR), uma organização internacional dedicada ao combate ao tráfico sexual de crianças e adolescentes, fundada pelo ex-agente de segurança norte-americano Tim Ballard, figura reconhecida mundialmente por operações de resgate em diversos países.

Segundo a parlamentar, a chegada da instituição ao Brasil representa um passo inédito na cooperação internacional contra redes de exploração infantil que atuam na Amazônia e em corredores fronteiriços vulneráveis.

Silvia Waiãpi também anunciou que o governo estadual deve oficializar ainda neste ano a criação de uma Delegacia Especializada para o Combate ao Tráfico Infantil, uma reivindicação antiga de organizações civis, conselhos tutelares e especialistas em segurança pública. “Não basta denunciar, é preciso agir”, afirmou a deputada.

Desde o início do mandato, em janeiro de 2023, Waiãpi tem se dedicado a expor publicamente casos de abuso, exploração sexual e tráfico de crianças na região amazônica. De acordo com a deputada, o impacto dessas denúncias exigiu respostas concretas, além de discursos. “Como parlamentar, senti-me no compromisso de realizar ações efetivas para evitar esses crimes”, disse à reportagem do Congresso em Foco.

Foi nesse contexto que a deputada levou Tim Ballard ao Amapá, para conhecer de perto a realidade local, ouvir profissionais da rede de proteção e avaliar as necessidades estruturais para uma cooperação direta. Durante a visita, Silvia Waiãpi foi comunicada de que a OUR abriria uma operação no Brasil. O Macapá seria a sede nacional.

A visita internacional, inclusive, mobilizou instituições no Amapá na primeira semana de julho, quando Tim Ballard esteve na capital amapaense a convite da deputada.

Ele participou de palestras no Tribunal de Justiça do Amapá (TJAP), em evento organizado com o apoio da OAB/AP e da Escola Judicial do Amapá (EJAP). O objetivo foi mobilizar autoridades, operadores do direito, forças de segurança e a sociedade civil sobre os riscos crescentes de assassinatos, abusos e tráfico de crianças na Amazônia, especialmente após a intensificação de rotas clandestinas usadas por facções e redes internacionais.

O presidente do TJAP, desembargador Jaime Ferreira, classificou a iniciativa como “de relevância social imensurável”, ao destacar que trazer um especialista internacional para debater o tema no coração da Amazônia é uma oportunidade rara para atualização técnica e para o fortalecimento da rede de proteção.

Silvia Waiãpi aguarda o anúncio oficial do Executivo sobre a delegacia especializada, que, segundo a deputada, já tem projeto estruturado.

A responsável pela Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes contra a Criança e o Adolescente (DERCCA), delegada Clívia Valente, comemorou a visita de Ballard e a futura parceria internacional.

“Tim esteve em nossa DP e voltará com ajudas significativas para a implementação de nossas investigações”, declarou. “Nossa missão é a mesma. Falamos a mesma língua quando o assunto é o combate e prevenção a esses crimes gravíssimos.”

Segundo a delegada, o Amapá enfrenta há décadas uma combinação perigosa: altos índices de subnotificação, regiões de difícil acesso, fronteiras vulneráveis, comunidades ribeirinhas sem presença do Estado e uma cultura de naturalização de práticas violentas que, muitas vezes, são justificadas como tradições locais.

“A luta por dignidade sexual de nossas crianças e adolescentes transpassa o dever funcional e se traduz em amor e coragem”, ressaltou. “Aquilo que alguns chamam de “cultural”, se referindo à exploração sexual na Amazônia, digo que é crime. E, aqui, esses criminosos não terão espaço. Nosso povo não coaduna com essa barbárie.”

Tim Ballard também confirmou a intenção de instalar uma sucursal permanente da OUR no país, com foco inicial na Amazônia. Ele elogiou o trabalho da deputada Silvia Waiãpi, ao afirmar que sua atuação foi determinante para que a organização incluísse o Brasil em suas operações internacionais de resgate.

O ativista também concordou com o diagnóstico da deputada sobre o abandono social da região. Para ambos, políticas restritivas que impedem o desenvolvimento econômico da Amazônia criam um ambiente propício para facções criminosas, traficantes de pessoas e abusadores, que se aproveitam da pobreza extrema e da ausência do Estado para recrutar, explorar e transportar crianças.

Ballard destacou que a OUR pretende auxiliar investigações, oferecer tecnologia de rastreamento, capacitar equipes policiais, promover missões conjuntas e desenvolver protocolos de prevenção para comunidades vulneráveis.

Se confirmada a instalação da delegacia especializada ainda neste ano, e com a chegada da OUR, o Amapá poderá se tornar um polo nacional de combate ao tráfico de crianças, integrando esforços internacionais e fortalecendo a segurança pública na região.

Para Silvia Waiãpi, Tim Ballard e autoridades locais, o objetivo é tirar o Amapá do mapa da vulnerabilidade e colocá-lo no centro da resistência global contra a exploração infantil.


Um desafio contínuo

A situação do tráfico de pessoas no Amapá é um problema complexo e persistente, enraizado nas condições geográficas e socioeconômicas da região. A extensa fronteira, a dificuldade de fiscalização e a vulnerabilidade de parte da população criam um ambiente propício para a atuação de redes criminosas que veem nos seres humanos uma mercadoria lucrativa.

As histórias das vítimas, marcadas pela violência, pela traição e pela perda de dignidade, são a face mais cruel de um crime que destrói vidas e famílias.

https://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2022/04/08/desaparecimento-de-adolescentes-em-floresta-no-ap-completa-1-ano-sem-respostas-nao-sei-o-que-aconteceu-mas-esta-vivo-diz-mae.ghtml

A resposta do Estado, por meio de operações policiais e da atuação de núcleos de enfrentamento, tem sido fundamental para desarticular algumas dessas redes e levar os criminosos à Justiça. As operações Arapuca, Piratas do Caribe e outras demonstram um esforço contínuo para combater essa prática. No entanto, a reincidência de criminosos e a constante adaptação das rotas e dos métodos de aliciamento mostram que a repressão, por si só, não é suficiente.

O enfrentamento do tráfico de pessoas no Amapá e em toda a Amazônia exige uma abordagem ampla, que inclua não apenas a segurança pública, mas também políticas sociais de proteção à infância e à adolescência, geração de emprego e renda e fortalecimento das comunidades locais.

A conscientização da população sobre os riscos e os canais de denúncia é uma ferramenta essencial para a prevenção. A luta contra essa forma de escravidão moderna é um desafio que convoca toda a sociedade a um compromisso permanente com a defesa da vida e da dignidade humana na fronteira norte do Brasil.


A mente do predador

As prisões de empresários e políticos envolvidos na compra de meninos de 2 anos expuseram algo que, para o senso comum, parece inacreditável: adultos com poder financeiro e influência política deliberadamente adquirindo crianças para abuso sexual e práticas degradantes.

Para compreender como esse comportamento se sustenta, é preciso ir além da superfície criminosa e mergulhar no núcleo psicológico desses agressores.

Esses indivíduos não se comportam como criminosos impulsivos. Ao contrário: planejam, calculam riscos, montam estratégias de transporte, pagamento, ocultação e uso de propriedades ou empresas para dissimular suas ações.

Isso já indica um perfil de agressor organizado, com maior capacidade executiva e controle comportamental. Esse tipo de criminoso se vale da racionalidade para estruturar a violência.

Do ponto de vista da psicologia criminal, esses indivíduos geralmente apresentam traços consistentes com o que a literatura define como personalidade antissocial com elementos psicopáticos. A psicopatia não é uma doença, mas um conjunto de características estáveis que envolvem ausência de empatia, manipulação, frieza emocional e uma estrutura cognitiva que utiliza pessoas como instrumentos.

Nos casos do Amapá, o componente sexual dirigido a crianças de 2 anos também aponta para categorias clínicas específicas dentro da psiquiatria forense: pedofilia e, nos episódios de zoofilia, parafilias graves relacionadas à distorção completa do vínculo entre afeto e sexualidade.

No entanto, a pedofilia por si só não explica o comportamento. Há pedófilos que não cometem crimes, porque reconhecem o dano e buscam tratamento. Já os envolvidos nessa rede apresentam algo mais profundo: a combinação entre parafilia e uma estrutura de personalidade completamente voltada à objetificação.

A neurociência tem contribuído para compreender como sujeitos com traços antissociais severos constroem sua lógica interna. Pesquisas de neuroimagem mostram que agressores sexuais violentos com esse perfil apresentam redução de atividade em áreas responsáveis pelo reconhecimento emocional do outro, como a amígdala, e falhas no córtex pré-frontal ventromedial, região responsável por julgamento moral e tomada de decisões éticas.

Essas falhas não anulam a capacidade cognitiva — esses indivíduos são plenamente capazes de diferenciar certo e errado. O que ocorre é que o cérebro não atribui a esses atos o mesmo peso moral que atribuiria a alguém com empatia preservada.

Esse descompasso neurológico cria uma espécie de racionalização interna da violência: a criança não é vista como pessoa, mas como objeto de prazer. A ausência de resposta emocional que deveria surgir diante da dor alheia é substituída por uma lógica puramente utilitária.

Além da frieza e do cálculo, esses agressores apresentam outro traço marcante: o uso do poder como escudo. Empresários e políticos envolvidos nesses crimes geralmente acreditam que jamais serão responsabilizados. Essa sensação não é apenas arrogância; faz parte da estrutura cognitiva que a neuropsiquiatria identifica como grandiosidade narcísica, muito comum em criminosos de colarinho branco e em abusadores reincidentes.

Eles não se veem como criminosos, mas como figuras excepcionais, privilegiadas, acima da lei. É esse sentimento que permite que alguém com status social elevado compre uma criança de 2 anos sem considerar a gravidade do que faz.


O Perfil Psicológico e Criminal dos Articuladores
do Desvio dos R$ 48 Milhões

Se o primeiro grupo opera diretamente na violência física e sexual contra crianças, o segundo atua na violência institucional: o desvio dos R$ 48 milhões de reais destinados à segurança pública e ao combate à pedofilia.

Politicamente, esse desvio representou um golpe que vai além da malversação de recursos públicos. Ele destruiu a principal ferramenta que o estado teria para enfrentar uma das piores redes criminosas da região Norte. A construção da nova DEIC, especializada em crimes contra crianças e adolescentes, equipada com tecnologias de investigação e inteligência digital, simplesmente deixou de existir. A verba que deveria proteger vidas foi apropriada para interesses particulares, em reuniões abafadas e silenciosas.

Na psicologia criminal, esse tipo de conduta se enquadra dentro das formas de abuso de poder institucional que caracterizam o chamado “crime estratégico”.

Diferente do crime impulsivo, o crime estratégico é praticado por agentes que compreendem perfeitamente o funcionamento estrutural do Estado e utilizam esse conhecimento para manipular a máquina pública em benefício próprio. É um crime que exige raciocínio, articulação e frieza burocrática.

Os articuladores do desvio apresentam um perfil psicológico muito semelhante ao de criminosos de colarinho branco, cuja motivação central não é o prazer imediato, mas o poder. A sensação de controle sobre as engrenagens políticas e administrativas funciona como um reforço psicológico contínuo.

Esses indivíduos se veem como operadores da máquina pública, capazes de moldá-la conforme suas necessidades. Há um componente narcísico evidente: a crença de que o Estado lhes pertence, de que os recursos podem ser realocados à vontade e de que qualquer oposição será facilmente neutralizada.

Um elemento essencial no perfil desses agentes é a capacidade de dissociação moral. Eles sabem que o dinheiro serviria para combater exploração sexual, tráfico infantil e pedofilia, mas classificam a dor dessas crianças como um dano colateral irrelevante.

Essa dissociação não é ignorância; é escolha. A psicologia chama esse fenômeno de “neutralização moral”, um mecanismo interno que permite justificar o injustificável. Em suas narrativas privadas, esses parlamentares constroem justificativas ideológicas, administrativas ou políticas que aliviam o peso ético do ato.

Do ponto de vista neurocientífico, criminosos de colarinho branco apresentam um padrão diferente dos predadores sexuais. Não há parafilias, nem impulsos violentos. A questão reside na forma como o cérebro processa recompensa e risco.

Estudos mostram hiperatividade no sistema dopaminérgico associado ao reforço quando esses indivíduos manipulam sistemas complexos a seu favor. A sensação de êxito burocrático produz um prazer interno comparável ao estímulo de um vício comportamental: quanto maior o desvio, maior a excitação cognitiva gerada pela operação.

Essa estrutura intelectualizada torna esses agentes extremamente perigosos porque não parecem perigosos. Não há armas, não há violência física. Mas há a construção deliberada de políticas que matam lentamente. Quando o Estado não cria sistemas de proteção, crianças morrem, traficantes prosperam e comunidades inteiras permanecem vulneráveis.

O desvio dos R$ 48 milhões não foi uma decisão isolada. Foi um ato praticado por pessoas que acreditam que jamais serão responsabilizadas, que confiam no silêncio da máquina pública e que agem de forma coordenada.

Tanto que, mesmo após denúncias formais no Ministério Público Federal e envio da recomendação à PGR, nenhuma resposta foi dada. A impunidade se tornou parte da engrenagem psicológica desses agentes.


Dois Grupos, a Mesma Estrutura Interna: A Desumanização Como Núcleo Psicológico

Embora atuem em esferas diferentes, os dois grupos têm algo em comum: a desumanização total do outro.

No primeiro grupo, a desumanização atinge o extremo da violência física e sexual. Crianças são tratadas como objetos descartáveis. A dor não é percebida, ou é ignorada.

No segundo, a desumanização acontece nas camadas mais sutis da burocracia. Crianças não são vistas; são números. A dor não é presenciada, então não produz impacto emocional. O sofrimento é abstraído, dissolvido em planilhas e votações silenciosas.

Ambos compartilham traços de narcisismo social e psicopatia funcional, ainda que em graus e expressões completamente diferentes. Ambos operam dentro de sistemas onde acreditam ser intocáveis. E ambos, cada um à sua maneira, competem para ocupar o topo da hierarquia de poder — um através da violência sexual, outro através da violência institucional.

Há ainda um aspecto que a neurociência destaca: a redução de conectividade entre regiões do cérebro responsáveis pela empatia e áreas que regulam recompensa. Isso significa que, tanto nos predadores sexuais quanto nos articuladores da corrupção, o sofrimento alheio não funciona como freio moral.

O cérebro literalmente não reage como deveria. E, sem essa reação, cresce um ciclo interno de gratificação: quanto mais controle exercem, mais querem exercer.

O resultado é um ecossistema criminal onde a violência sexual e a corrupção não coexistem por acaso. Elas se alimentam mutuamente. O dinheiro desviado protege a rota. A rota alimenta o mercado da exploração infantil. E o silêncio governamental permite que ambos prosperem.


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