Criminal

55- Transtorno Dissociativo De Identidade

Como reconhecer a fragmentação do eu, diferenciar de quadros psicóticos e conduzir avaliações em contextos sensíveis

Transtorno Dissociativo De Identidade – A fragmentação da identidade vem ganhando mais atenção no debate público, mas ainda é cercada de mitos, rótulos apressados e erros diagnósticos que custam caro para pacientes, famílias e operadores do sistema de justiça. O Transtorno Dissociativo de Identidade, conhecido pela sigla TDI, descreve uma condição em que o senso de “quem eu sou” apresenta descontinuidades perceptíveis, acompanhadas de alterações no controle de ações, na memória e na consciência. O efeito, para quem vive essa experiência, não é uma excentricidade: é uma quebra na linha narrativa do próprio eu, com lacunas, mudanças de estado e uma batalha diária para manter a vida em continuidade.


O Que Define O Transtorno Dissociativo De Identidade

O TDI é caracterizado pela presença de dois ou mais estados distintos de personalidade ou pela vivência de possessão, associados a episódios recorrentes de amnésia. A ruptura não é apenas simbólica. Ela se manifesta como descontinuidade do senso de si e do domínio das próprias ações, com alterações observáveis no afeto, no comportamento, na percepção, na cognição e no funcionamento sensório-motor. Em algumas pessoas, essa mudança de estado é evidente para quem está ao redor; em outras, permanece discreta, às vezes deliberadamente disfarçada para reduzir estigma ou evitar conflito.

A descrição de vozes internas, ações que “parecem não partir de si” e sentimentos de estranhamento sobre o próprio corpo é frequente. Muitas pessoas relatam pensamentos, emoções e impulsos intrusivos, como se fossem inseridos por uma instância distinta. Outras descrevem preferências que mudam de maneira súbita, como se o paladar, o estilo de roupa ou os interesses tivessem sido “trocados” por alguns instantes ou horas. Essa oscilação não é capricho: é a assinatura da dissociação.


Cultura, Religião E O Lugar Da Possessão

Em várias culturas e tradições religiosas, existem práticas em que a pessoa “incorpora” entidades espirituais em rituais específicos. Essas vivências, quando circunscritas ao contexto litúrgico e compreendidas como parte aceita da prática de fé, não configuram transtorno.

O problema emerge quando experiências semelhantes ocorrem fora do ambiente ritual, em situações cotidianas, sem controle e com efeito desorganizador. A lente clínica precisa ser sensível a esse recorte. O mesmo fenômeno que, no templo, é uma expressão de devoção, no ambiente de trabalho pode sinalizar sofrimento dissociativo. Juízo clínico e respeito cultural não são antagônicos; são complementares.


Intrusões Na Consciência E No Corpo

Pessoas com TDI descrevem intrusões recorrentes e não explicáveis por outros quadros, que invadem a experiência consciente. A fala pode mudar, o timbre pode oscilar, a escrita pode assumir traços distintos, a postura corporal pode se transformar em segundos.

Há relatos de “estar vendo o próprio corpo agir” sem conseguir interromper, como se se tornasse espectadora de si. Isso se acompanha, por vezes, de despersonalização e desrealização, sensações nas quais o corpo parece estranho ou o ambiente parece falso, distante, desfocado. Em casos específicos, é possível que surjam sintomas neurológicos funcionais, com alterações sensório-motoras sem correlato orgânico demonstrável, intensificados por estresse.


Alucinações, Psicose E O Desafio Do Diagnóstico

Vozes internas, imagens vívidas, cheiros e sensações táteis relatados durante estados dissociativos podem levar à hipótese de esquizofrenia ou de depressão com características psicóticas. A diferença passa pelo padrão temporal e pelo sentido subjetivo.

Em TDI, tais fenômenos tendem a ocorrer vinculados aos estados alternados, muitas vezes com menor frequência do que em transtornos psicóticos clássicos, e são frequentemente reconhecidos pelo sujeito como manifestações de “outra parte” dele mesmo.

Já na esquizofrenia, a distribuição dos sintomas costuma ser mais difusa ao longo do tempo, com prejuízo persistente da crítica. Essa distinção é sutil, exige acompanhamento e evita rótulos que travam a vida e atrasam o tratamento adequado.


Critérios Diagnósticos

O núcleo do diagnóstico envolve uma ruptura da identidade com dois ou mais estados de personalidade distintos ou vivência reconhecida de possessão, combinada com amnésias que fogem ao esquecimento comum. A descontinuidade do eu se acompanha de variações no humor, no comportamento e na percepção, que podem ser vistas por terceiros ou relatadas pela própria pessoa. A intensidade e a forma de manifestação variam conforme fatores como estresse, conflito, dinâmica interna entre identidades e resiliência emocional. Em períodos de pressão psicossocial, as manifestações tendem a se agravar e durar mais.


Amnésia Dissociativa

As lacunas de memória ligadas ao TDI se apresentam de modos diferentes. Há quem conte períodos inteiros da infância e da adolescência como se tivessem sido apagados, inclusive datas marcantes que, em geral, as pessoas recordam sem esforço. Outros descrevem lapsos em acontecimentos triviais do dia, como não lembrar o que comeram ou como voltaram para casa, e, em alguns momentos, parecem “perder” habilidades que dominavam, como dirigir ou executar tarefas profissionais rotineiras.

Também ocorrem descobertas de evidências de ações que não lembram ter feito: compras não reconhecidas, objetos que aparecem em bolsas, anotações e desenhos estranhos, ferimentos sem lembrança de quando aconteceram. Em situações mais dramáticas, a pessoa se percebe subitamente em outro lugar, como se “acordasse” numa praça ou na praia, sem qualquer ideia de como chegou ali, quadro tradicionalmente chamado de fuga dissociativa.


Switching: Quando Uma Identidade
Cede Lugar À Outra

O termo switching descreve a transição, às vezes abrupta, entre estados de identidade. Pode durar segundos, pode ser quase imperceptível em público e costuma ser precipitado por estressores ou por estímulos que lembram experiências traumáticas passadas. Durante essas trocas, mudam a voz, o vocabulário, a linguagem corporal, as preferências e o humor.

Em alguns casos, uma identidade tem memória do que a outra viveu; em outros, há compartimentalização quase total, com amnésia entre as partes. Essa dinâmica complica a vida cotidiana e torna desafiadora a entrevista clínica, especialmente quando cada estado responde de modo diferente a perguntas sensíveis.


Prevalência, Gênero E Subnotificação

Estudos populacionais apontam prevalência em adultos por volta de um ponto e meio percentual, com diferença pequena entre homens e mulheres. Mulheres aparecem com maior frequência em serviços clínicos, geralmente com estados dissociativos agudos, flashbacks, amnésia, fuga, sintomas conversivos, alucinações e automutilação.

Homens tendem a subrelatar sintomas e histórias de trauma, o que pode inflar falsos negativos e subestimar sua presença em amostras clínicas; em contextos forenses, comportamentos violentos são reportados com maior frequência entre eles. O resultado é um retrato enviesado, em que a realidade clínica é maior do que os números sugerem.


Trauma, Tentativas De Suicídio E Urgência De Cuidado

Histórias de abuso e negligência na infância aparecem de maneira esmagadora nos relatos de pessoas com TDI. Procedimentos médicos invasivos, experiências de guerra, violência sexual e outras vivências extremas também aparecem como gatilhos, isolados ou combinados. Esse pano de fundo traumático ajuda a entender por que o risco de suicídio é elevado e por que múltiplas tentativas e autoagressões são tão frequentes.

Um detalhe angustiante é que nem sempre a identidade que se apresenta em sessão reconhece o impulso suicida de outra parte. Há casos em que a tentativa ocorreu em estado alternado, sem lembrança posterior. A avaliação de risco precisa contemplar essa possibilidade, com perguntas que explorem sentimentos “de outras partes” e com planos de segurança que incluam a rede de apoio.


Diferenciação Com Fenômenos
Do Desenvolvimento Infantil

Em crianças, amizades imaginárias e brincadeiras com personagens são comuns e saudáveis. O cuidado clínico é não patologizar o lúdico. O foco volta-se à intensidade, à perda de controle, ao prejuízo funcional e à presença de amnésias atípicas, switching evidente e sofrimento associado.

Quando essas características se somam, a hipótese de TDI em desenvolvimento ganha força e merece avaliação especializada. Sem esse filtro, corre-se o risco de confundir fantasia infantil com dissociação e criar estigmas desnecessários.


Substâncias, Condições Médicas
E O Diagnóstico Excludente

Intoxicações alcoólicas e uso de outras substâncias geram apagões, comportamento caótico e amnésia. Convulsões parciais e quadros neurológicos podem produzir alterações de consciência. Nenhum desses fenômenos, por si, caracteriza TDI.

O diagnóstico é clínico e exige excluir causas fisiológicas e efeitos de substâncias, integrando história, exame do estado mental, observação longitudinal e, quando necessário, exames complementares. A pressa em fechar rótulos é uma inimiga silenciosa.


Implicações Forenses:
Entre O Direito, A Clínica E A Verdade

Em cenário forense, o TDI apresenta desafios particulares. Pessoas podem alegar que atos ilícitos foram perpetrados por uma identidade alternativa, sobre a qual não teriam controle ou lembrança. Alegações desse tipo exigem perícia de alta qualidade, com múltiplas entrevistas, observação do padrão de switching, exploração das memórias acessíveis a cada estado e checagem de consistências e inconsistências.

A possibilidade de amnésia entre identidades pode dificultar depoimentos, mapear cronologias e conciliar versões. Em casos raros, há relatos de roubo vinculados a necessidades de uma parte específica, agressões cometidas durante estados mais impulsivos, destruição de patrimônio como expressão de vingança simbólica e, em contextos de maior gravidade, homicídios e delitos sexuais associáveis a histórias de violência prévia e a dinâmicas de repetição traumática.

O ponto sensível é que a responsabilidade penal e a necessidade de tratamento caminham lado a lado, e não em direções opostas.


Entrevista Pericial: Técnica, Ética E Segurança

Entrevistar alguém com TDI em ambiente forense exige preparação. O espaço deve ser seguro, com planejamento para eventuais trocas de estado durante a conversa. A possibilidade de switching implica adaptar linguagem e abordagem ao estado que emerge. Se uma parte infantil se manifesta, recursos lúdicos e comunicação simples podem ser necessários; se uma parte adulta e estruturada assume o diálogo, o tom muda.

As perguntas precisam ser claras, respeitosas e graduadas, evitando gatilhos que precipitem dissociações intensas sem necessidade clínica. É essencial registrar quando cada identidade se apresenta, como se expressa, que lembranças acessa e o que partilha de comum com as demais.

Convergências entre relatos são valiosas para verificar fatos; discrepâncias ajudam a entender a organização interna e não se traduzem automaticamente em mentira. Em geral, estados alternados raramente exibem a complexidade cognitiva exigida para enganar de forma consistente; quem tende a dissimular com maior sofisticação é a identidade que se reconhece como “principal”.


Manejo Clínico: Estabilização,
Integração E Prevenção De Danos

Na clínica, o trabalho começa por estabilizar, reduzir crises dissociativas e construir rotinas que aumentem previsibilidade e segurança. Psicoeducação ajuda a nomear o que acontece, a reconhecer sinais precoces de switching e a criar estratégias de ancoragem. Intervenções focadas em trauma, aplicadas com cuidado e no tempo certo, buscam integrar lembranças fragmentadas sem sobrecarregar o sistema psíquico.

O plano de segurança para risco suicida inclui combinar sinais com familiares ou amigos, restringir acesso a meios letais e desenhar rotas de ajuda imediata. A meta de longo prazo não é apagar partes, mas promover cooperação interna e, quando possível, integração funcional que devolva continuidade ao eu narrativo.


Estudos De Caso E Pensamento Crítico

Registros audiovisuais e séries documentais sobre casos célebres podem ser úteis como material didático, desde que vistos com espírito crítico. Obras bem produzidas ilustram fenômenos como switching, amnésia inter-estados, intrusões sensoriais e impacto do trauma; ao mesmo tempo, podem romantizar ou exagerar elementos em nome da narrativa.

O olhar clínico pede sempre a pergunta sobre contexto, consistência temporal e efeito funcional. A arte ajuda a imaginar; a perícia devolve o pé no chão.


Continuidade, Cuidado E Responsabilidade

O TDI não é uma curiosidade midiática nem uma fantasia conveniente. É uma forma de sofrimento real, muitas vezes ancorada em histórias de violência, que fragmenta o fio da vida em trechos desconexos. Reconhecer seus sinais é o primeiro passo para oferecer cuidado adequado. Diferenciar de quadros psicóticos evita sobretratamentos e estigmas.

Compreender a influência do contexto cultural protege a fé e honra a ciência. No foro, a perícia séria equilibra verdade e justiça, sem romantizar, sem negar. E, na clínica, a meta é devolver à pessoa o que a dissociação lhe roubou: continuidade, autonomia e um senso de si que caiba inteiro na própria pele.

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