23 – Tudo é TDAH Agora? Com o Especialista Yuri Maia
No auge da moda dos “autodiagnósticos” nas redes, o especialista Yuri Maia, do portal TDAH Descomplicado, alerta para os perigos da romantização do transtorno e revela a dura realidade de quem vive com ele.
TDAH – Em um mundo digital onde a informação e a desinformação viajam na mesma velocidade, uma nova tendência tem tomado conta das redes sociais: o autodiagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).
Vídeos curtos com listas de “10 sinais de que você tem TDAH” acumulam milhões de visualizações, levando uma legião de pessoas a se identificarem com sintomas como esquecimento, impulsividade e dificuldade de concentração.
A frase “acho que tenho TDAH” tornou-se tão comum que levanta uma questão inevitável: estamos vivendo uma epidemia do transtorno ou uma epidemia de diagnósticos equivocados? O que é, de fato, o TDAH, e o que são apenas traços da condição humana em um mundo cada vez mais acelerado e estressante?
Para entender este território complexo e minado de informações superficiais, conversamos com Yuri Maia, um dos maiores especialistas em TDAH no Brasil e criador do portal “TDAH Descomplicado”. Com uma trajetória que começou com seu próprio diagnóstico na infância, nos anos 90, e culminou em mais de uma década de estudo e divulgação científica sobre o tema, Yuri oferece uma perspectiva que é, ao mesmo tempo, técnica e profundamente humana.
Ele nos mostra através das armadilhas do diagnóstico pela internet, das diferenças sutis na manifestação do transtorno entre gêneros, do polêmico debate sobre a inclusão escolar e dos perigos de uma romantização que mascara o sofrimento real de quem convive com o transtorno.
A Armadilha do Autodiagnóstico:
Por Que Nem Tudo Que Parece, é TDAH
O ponto de partida para a confusão generalizada, segundo Yuri Maia, está na própria natureza dos sintomas do TDAH.
“Quando as pessoas pegam os sintomas do TDAH, e muitas vezes as pessoas olham esses sintomas a partir do momento que você vê materiais na internet (…) muitos desses sintomas são considerados sintomas humanos também”, ele explica.
Esquecimento, impulsividade, baixa tolerância à frustração, dificuldade em se engajar em tarefas pouco prazerosas — quem nunca se sentiu assim? O problema, alerta o especialista, é que a internet frequentemente apresenta esses sintomas de forma descontextualizada.
“A gente tem que entender que esses sintomas acontecem com qualquer pessoa, mas no TDAH, quando acontece, ele acontece totalmente fora da média, da média padrão”, enfatiza Yuri. A diferença crucial não está no “o quê”, mas no “quanto” e no “como”. No TDAH, os sintomas não são episódicos; eles são crônicos e pervasivos. “Ele afeta você o tempo inteiro, de manhã, tarde, noite e depois também, até quando você está dormindo.”
É um padrão persistente que causa prejuízos significativos em múltiplas áreas da vida: acadêmica, profissional, social e familiar.
A facilidade de acesso a testes online e listas de verificação cria uma ilusão de conhecimento que pode ser perigosa. Uma pessoa passando por um período de estresse crônico, por exemplo, pode facilmente se encaixar em todos os critérios de um teste genérico. “Não é assim que você tem que ver o teste. O teste de internet, ele é no máximo recreativo”, adverte Yuri. O resultado é uma corrida aos consultórios médicos com um diagnóstico pré-concebido. “Doutor, eu tenho certeza que eu tenho, só vim buscar o CID”, ele ironiza, descrevendo um cenário cada vez mais comum.
O perigo se agrava quando o indivíduo encontra profissionais pouco capacitados ou especializados em outras áreas. Um neurologista ou psiquiatra pode ter vasto conhecimento em autismo ou bipolaridade, mas não necessariamente em TDAH. Isso pode levar a diagnósticos apressados e equivocados.
“Você que foi ao médico aí com suspeita de TDAH e, de repente, você viu que em poucos minutos de consulta ele já te deu o diagnóstico, cuidado, porque pode ser que esse diagnóstico esteja impreciso”, alerta.
Um diagnóstico correto, segundo Yuri, é um processo abrangente que envolve uma equipe multidisciplinar, incluindo psicólogos e neuropsicólogos, para realizar uma avaliação completa, levantar suspeitas de comorbidades e descartar outras condições.
“Não é raro adultos que se diagnosticam com TDAH (…) e depois se descobrem bipolares. (…) Para você não correr esse risco de fazer um tratamento dispendioso por uma questão que você não tem, faça um diagnóstico direitinho.”
A Realidade Nua e Crua
da Infância nos Anos 90
Para entender a profundidade do impacto do TDAH, é preciso ir além da teoria e ouvir as histórias de quem viveu o transtorno na pele. A jornada de Yuri Maia começou muito antes de ele se tornar um especialista no assunto, no final dos anos 80 e início dos 90, uma época em que o TDAH era um termo restrito a poucos círculos médicos e quase desconhecido do público geral.
“Eu comecei a ter problemas escolares, né? Principalmente lá na primeira série, aos sete anos. Eu não conseguia copiar nada do quadro, eu não conseguia parar e prestar atenção na professora; era realmente crônico”, ele recorda. A memória viva daquela época é a de uma professora que passava a maior parte do tempo chamando sua atenção. “Eu virava para trás, eu levantava, eu fazia piada. Tudo me chamava a atenção, tudo me estimulava muito mais do que ficar olhando a professora.”
Seus cadernos da época, que ele guarda até hoje, são um testemunho silencioso de sua luta. O cabeçalho caprichado no início da página rapidamente dava lugar a um vazio, interrompido apenas por carimbos da professora com frases como “não fez a tarefa” ou “você precisa se esforçar mais”. Era a clássica manifestação do TDAH em sala de aula: a incapacidade de sustentar a atenção em uma tarefa monótona. “Eu era o primeiro a dispersar”, conta.
Após muita insistência e a percepção de uma coordenadora atenta, sua mãe foi orientada a buscar um especialista. O diagnóstico veio após uma bateria de exames, incluindo um eletroencefalograma rudimentar, típico da época. “Tinha uma máquina gigante que passava umas agulhas assim, passando aquele rolo gigante de papel com as ondas cerebrais”, descreve. No entanto, o diagnóstico, na prática, “ficou na gaveta”.
Embora tenha mudado para uma escola melhor e recebido um acompanhamento psicológico, o suporte estava longe do ideal. “Eu nunca tive um apoio profundo, né, um apoio assim, bem direcionado, como hoje a gente tem.”
Naquela época, o TDAH não fazia parte do repertório pedagógico dos professores. A falta de conhecimento e ferramentas adequadas resultou em sofrimento e até em violência. “Inclusive fui agredido. Tem esse episódio aí que eu já contei: fui agredido em sala de aula por conta disso”, revela. Sua trajetória escolar foi uma batalha constante, sempre passando “raspando”, com a sensação de que sua cabeça simplesmente “não grudava” nos estudos.
Era a personificação do estigma que persegue tantos com o transtorno: o de ser preguiçoso, desinteressado ou incapaz, quando, na verdade, o cérebro apenas funciona de uma maneira diferente, necessitando de estímulos e abordagens que o sistema de ensino tradicional raramente oferece.
Meninos com TDAh Vs Meninas com TDAH
Uma das discussões mais importantes e, muitas vezes, negligenciadas sobre o TDAH é a sua manifestação distinta entre os gêneros. Essa diferença tem consequências diretas no diagnóstico, levando a uma subnotificação alarmante em meninas e mulheres, que acabam sofrendo em silêncio por anos, ou até por toda a vida.
Yuri Maia, alinhado a pesquisadores renomados como Russell Barkley, explica que há uma prevalência ligeiramente maior em meninos (cerca de 60% dos casos) e que o tipo hiperativo-impulsivo é mais comum neles.
“O tipo hiperativo motor principalmente; a motricidade, ele afeta mais os meninos também”, afirma. É o estereótipo clássico da criança que não para quieta, que sobe nas coisas, que interrompe a aula. Esse comportamento disruptivo funciona como um alarme, chamando a atenção de pais e professores e levando à busca por um diagnóstico.
Foi o caso do próprio Yuri: “Minha mãe foi chamada lá pela enésima vez, e a coordenadora falou: ‘Leva essa especialista aqui pra ver se tem alguma coisa’, por conta do meu comportamento e da minha agitação.”
Com as meninas, a história é outra. “Geralmente, a menina, ela tem, por não ser hiperativa, ela pode ter mais do TDAH do tipo desatento; e por ter o TDAH do tipo desatento, ela não atrapalha a aula”, explica Yuri. É a aluna quietinha, que parece estar prestando atenção, mas, na verdade, “está voando”.
Ela não vai para a coordenação, não gera reclamações. Na reunião de pais, a professora pode até elogiá-la por ser calma, mas lamentar que seu desempenho não corresponde ao seu aparente esforço. “Ela não consegue ter aderência no conteúdo ministrado da aula. Ela também deixa o caderno em branco, muitas vezes. Ou, quando consegue copiar, ela só replicou o texto, ela não entendeu o que estava ali.”
Essa “hiperatividade mental”, em oposição à hiperatividade motora dos meninos, faz com que as meninas passem despercebidas pelo sistema. O sofrimento é internalizado, manifestando-se como ansiedade, depressão, baixa autoestima e uma sensação crônica de inadequação. “A chance dela passar batida pela vida e não ser diagnosticada é muito mais alta”, conclui Yuri.
Na vida adulta, essas diferenças se acentuam. A mulher com TDAH enfrenta desafios adicionais, como a flutuação hormonal do ciclo menstrual, que pode intensificar os sintomas. “O adulto TDAH homem, ele tem uma estabilidade maior nos seus sintomas, o que acaba ajudando um pouco o tratamento. (…) Já a mulher, não”, pontua.
Além disso, a sobrecarga de jornadas múltiplas — trabalho, casa, filhos — que estatisticamente ainda recai mais sobre as mulheres, torna o manejo do transtorno ainda mais complexo. Yuri observa essa disparidade em suas próprias mentorias:
“Nos meus programas de mentoria para ajudar filhos com TDAH, a imensa maioria é mulher: 97% das pessoas que entram na minha mentoria são mães e 3% pais.”
Essa realidade evidencia um viés de gênero que precisa ser urgentemente discutido, para que milhares de meninas e mulheres possam finalmente receber o diagnóstico e o tratamento que lhes foram negados por tanto tempo.
Inclusão Escolar
O debate sobre a inclusão de alunos com necessidades especiais nas escolas regulares é um dos campos mais minados e ideologicamente carregados da educação brasileira. Recentemente, a polêmica foi reacendida por um decreto do governo federal que, na prática, ameaça a existência de instituições especializadas como as APAEs e Pestalozzi, defendendo um modelo de inclusão total na rede regular de ensino. Para Yuri Maia, essa abordagem, embora bem-intencionada na teoria, ignora perigosamente a complexa realidade das salas de aula e as necessidades específicas de muitas crianças.
“O que eu percebo é que essa mudança (…) é uma forma, às vezes, até do governo querer tirar um pouco isso das costas dele, do tipo assim: não, vamos colocar todo mundo na escola regular”, critica Yuri. Ele argumenta que essa política transfere toda a responsabilidade para o professor, “mesmo que ele não tenha remuneração para isso, mesmo que ele não tenha treinamento para isso, mesmo que falte professores de apoio para esse tipo de situação.”
Ele aponta para o fator ideológico que permeia muitos conselhos de psicologia e educação, que, em alguns casos, chegam a negar a base biológica de transtornos como o TDAH e a dislexia, tratando-os como meras construções culturais ou problemas pedagógicos. “Eles negam a necessidade e (…) as diferenças estruturais, neuroquímicas, de reação, cognitivas (…) e estão querendo colocar tudo dentro de uma mesma caixa do mundo perfeito, do mundo ideal, que não corresponde ao mundo real.”
A verdadeira inclusão, defende Yuri, é reconhecer que, embora a convivência com a diversidade seja benéfica, há casos em que a escola regular simplesmente não tem estrutura para atender às necessidades do aluno.
“Tem alunos que são paraplégicos e tetraplégicos, (…) um autismo nível 3 de suporte, não verbal, com dificuldades severas de aprendizado e de inclusão. Então, fica muito difícil manter no mundo da curva normal.” Para esses casos, as escolas especializadas não são um ato de segregação, mas uma necessidade vital.
A entrevistadora, mãe de um menino autista nível 3, reforça o ponto com um exemplo prático e contundente: para que seu filho tivesse uma “inclusão” mínima, a professora precisou rebaixar o nível de aprendizado para toda a turma. “Pergunto a vocês, como pais típicos, vocês acham justo o filho de vocês estar sendo prejudicado porque o meu filho não tem direito a uma sala especial?”, ela questiona, expondo o dilema que a política de “inclusão a qualquer custo” impõe a toda a comunidade escolar.
Yuri concorda, afirmando que, em um cenário de sala de aula superlotada e sem apoio, todos perdem: “A professora vai ser prejudicada, os alunos neurotípicos vão ser prejudicados, e os neuroatípicos também.” Uma criança com TDAH sem o manejo adequado pode tumultuar o ambiente, prejudicando o aprendizado de todos.
Com o suporte correto — seja um professor de apoio, uma aula de reforço no contraturno ou adaptações pedagógicas —, essa mesma criança pode se regular e aprender, beneficiando a si mesma e à turma. “Não é questão capacitista”, esclarece Yuri. “É questão assim, vamos fazer o que é possível? Vamos. Mas, se a gente perceber que não está sendo possível, a gente muda a intervenção.”
Ignorar essa realidade em nome de uma ideologia é, para o especialista, um retrocesso perigoso. “Tem mãe que não pode nem morrer”, ele diz, ecoando o sentimento de muitos pais de crianças com necessidades severas. “Imagina se deixar de ter a APAE, imagina se deixar de ter um suporte especializado; essa mãe vai fazer o quê?” A luta, portanto, não é contra a inclusão, mas por uma inclusão inteligente, que respeite as individualidades e ofereça os recursos necessários para que cada aluno, típico ou atípico, possa atingir seu pleno potencial.
A Romantização do Transtorno
Em contraposição ao estigma da preguiça, um outro fenômeno igualmente prejudicial tem ganhado força nas redes sociais: a romantização do TDAH. Influenciadores e até mesmo alguns profissionais da saúde pintam o transtorno como um “superpoder”, uma fonte de criatividade ilimitada e energia contagiante. Frases como “eu adoro o meu TDAH” ou “sou tão distraídinha, que bonitinho” mascaram a realidade de uma condição que, em sua essência, é definida pelo prejuízo e pelo sofrimento.
Yuri Maia é enfático em sua crítica a essa tendência. “O transtorno, ele não é um presente, ele não é um superpoder”, afirma. “Você é criativo, você é criativa, você tem as suas habilidades, você é quem você é. Mas existe uma mochila cheia de pedras que você carrega, chamada TDAH.” Ele desafia a audiência a refletir sobre a dura realidade por trás da fachada romântica: “Quantos projetos maravilhosos você já botou na cabeça (…) mas você não consegue tirar nada do papel? Quantas vezes, mesmo conseguindo (…) abrir meu negócio, você faz o melhor bolo da cidade (…) mas você é um péssimo gestor, você procrastina demais, você perde os prazos, você paga multa?”
Essas dificuldades, que levam a falências, demissões e frustrações constantes, não são “bonitinhas” nem “engraçadinhas”. São a manifestação de um transtorno sério. “O T não é de, sei lá, de tesouro, é T de transtorno. É um transtorno, ele atrapalha a sua vida, ele está ali para te atrapalhar”, reforça Yuri. Ele compartilha sua própria luta, mesmo sendo um grande estudioso do tema:
“Até para ler esse tanto de livro aqui que eu tenho (…) eu tenho sérias dificuldades. Eu tenho que colocar no meu Kindle para ler de noite, porque de noite eu vou ler só cinco páginas e, com cinco páginas por dia, no final de muitos meses, eu consigo ler um livro.”
Ele reconhece suas capacidades, mas não as atribui ao transtorno. Pelo contrário. “Se eu, Yuri, não tivesse TDAH, eu seria capaz de fazer, com a minha personalidade, a minha genialidade, na minha área que eu gosto, coisas muito maiores, e eu tenho que reconhecer isso. Eu não gosto de ter TDAH.” Essa honestidade brutal é um antídoto necessário contra a positividade tóxica que minimiza a dor de quem realmente sofre com a condição.
Os dados de suas mentorias com adultos corroboram essa visão. “Mais da metade deles fala para mim: ‘Yuri, eu não duro mais de seis meses no emprego, eu não duro mais de um ano no emprego’”, ele revela. “O TDAH, quando ele arruma um emprego, ele está mais preocupado em não ser demitido do que crescer na empresa.” É um constante “modo de sobrevivência”, lutando contra a procrastinação e o medo de falhar, um ciclo que se repete a cada novo emprego, a cada novo projeto.
A romantização, portanto, é um desserviço. Ela não apenas invalida o sofrimento de milhões de pessoas, mas também desvia o foco do que realmente importa: o diagnóstico correto e a busca por tratamento e estratégias de manejo. O TDAH não é um traço de personalidade charmoso; é uma condição médica crônica que exige seriedade, acompanhamento profissional e uma rede de apoio compreensiva.
TDAH vs. Autismo
Com a popularização dos debates sobre neurodivergência, a sobreposição de sintomas entre diferentes condições, como o TDAH e o Transtorno do Espectro Autista (TEA), tornou-se uma fonte frequente de confusão. Ambos podem apresentar dificuldades de atenção e interação social, mas suas naturezas são distintas. Yuri Maia ajuda a esclarecer as diferenças, focando em um dos conceitos mais mal interpretados: o hiperfoco.
“O hiperfoco, no sentido literal dele, é você estar hiperfocado em um único tema. (…) Você está mergulhado naquilo diariamente, o tempo inteiro”, explica Yuri, associando este fenômeno mais diretamente ao autismo. Ele dá o exemplo clássico da criança autista que se torna uma mini especialista em dinossauros, aprendendo tudo sobre o assunto com uma profundidade impressionante. Esse interesse intenso e restrito é uma das características marcantes do TEA.
No TDAH, o que popularmente se chama de “hiperfoco” é, na verdade, um fenômeno diferente. “O que a gente chama de hiperfoco no TDAH, que é quando você entra numa atividade, você fica ali horas e horas e horas, tem um nome correto de perseverança”, corrige o especialista. A perseverança não é exclusiva do TDAH — qualquer pessoa pode se sentir completamente absorvida por uma atividade prazerosa. A diferença, novamente, está na intensidade e no contraste.
“Ele é muito mais evidente no TDAH, porque você sai do 8 para o 80. No neurotípico, você sai do 60 para o 80 (…). Não é tão visível e perceptível assim.” Essa capacidade de mergulhar intensamente em algo de interesse, enquanto se é incapaz de se engajar em tarefas rotineiras, cria a falsa impressão de um “poder mágico”.
Além do hiperfoco, outros traços ajudam na diferenciação. “Estereotipias comuns do autismo (…) e que, quando não são identificadas em outras crianças que só têm o TDAH, você já começa a dissociar e descartar um diagnóstico do outro”, aponta Yuri.
Atrasos na fala, dificuldades com o contato visual e padrões de comportamento repetitivos são mais característicos do autismo. No entanto, em casos de autismo nível 1 de suporte (anteriormente conhecido como Asperger), a distinção pode ser mais sutil, exigindo uma avaliação criteriosa e, muitas vezes, demorada. “Você pode levar meses para fechar o diagnóstico, tanto com o médico (…) quanto com o neuropsicopedagogo e o neuropsicólogo também.” A pressa, aqui, é inimiga da precisão.
Adaptação Escolar Para Além da Prova
Quando se fala em adaptação escolar para o TDAH, a discussão frequentemente se limita a concessões durante as avaliações, como tempo adicional. Para Yuri Maia, isso é apenas a ponta do iceberg. A verdadeira transformação precisa acontecer no cerne do processo de ensino-aprendizagem.
“Muito se fala sobre avaliação. Ah, tempo adicional. Ah, prova adaptada. Tá, cara, mas como é que é o aprendizado dessa criança?”, questiona. Ele critica a dependência excessiva de um único método de ensino, que não contempla a diversidade de cérebros na sala de aula. “Tem criança que simplesmente não consegue copiar do quadro. Você tem que começar a abrir mão disso, porque não adianta o que você faz se ele não vai conseguir.”
Ele defende uma abordagem pedagógica multifacetada. Se um professor tem uma aula muito teórica e expositiva, ele pode não atingir um aluno com TDAH que precisa de estímulos visuais ou práticos. A solução não é culpar o professor, mas equipá-lo com mais ferramentas. “Busque recursos. (…) Traga vídeo didático, traga exemplos, traga materiais, traga coisas visuais que possam estimular o aprendizado.”
Yuri também desmonta o mito de que o tratamento para o TDAH se resume a medicamentos. Ele lembra que os psicoestimulantes, como a Ritalina e o Venvanse, não funcionam para todos. “70% dos pacientes têm uma boa resposta. 30%, cara, 30% é muita gente, não tem uma resposta adequada.” Isso reforça a necessidade de intervenções não-farmacológicas, sendo a principal delas a terapia e a adaptação pedagógica. A escola precisa se tornar um ambiente que estimule e engaje, utilizando um “rodízio de estímulos” para manter a atenção do aluno com TDAH, cuja dopamina (neurotransmissor ligado à motivação) tende a cair rapidamente diante da monotonia.
O Caminho para a Aceitação
Talvez o momento mais tocante da conversa seja quando Yuri, falando não apenas como especialista, mas como pai, se dirige diretamente aos pais que estão no início da jornada de um diagnóstico. A entrevistadora, ao compartilhar sua própria experiência com o diagnóstico de autismo do filho — a negação, a raiva, o luto e, finalmente, a aceitação —, abre a porta para uma reflexão profunda sobre o processo emocional dos pais.
Yuri oferece uma verdade que, segundo ele, “não é muito reconfortante, mas não é ruim”. “Independente do que vocês desejam para os filhos de vocês, ele é o que ele é e ele já tem o que ele já tem”, ele diz. A negação, a busca por uma segunda, terceira ou décima primeira opinião na esperança de que o diagnóstico desapareça, é um esforço inútil que apenas adia o inevitável e, pior, rouba um tempo precioso de intervenção.
“Isso não vai fazer com que o negócio desapareça”, ele afirma. “Quanto antes você entender isso (…) e for atrás dos profissionais para corrigir a rota, mais fácil vai ser o desenvolvimento dele e com menor sofrimento.” Ele usa um exemplo prático: pais que suspeitam do TDAH aos 7 anos, mas decidem esperar, acreditando que “depois melhora”.
Anos depois, aos 11, quando finalmente buscam ajuda, encontram uma criança já marcada por traumas escolares, bullying e uma autoestima destruída. “Você perdeu vários anos. Você poderia ter levado 4 anos antes e você poderia ter já tido um desempenho, um sucesso no tratamento muito maior pela precocidade da coisa.”
Ele valida o processo de luto dos pais, reconhecendo que cada um tem seu tempo. “Se o seu coração está em luto, se você não está aceitando por hora, viva o teu luto, viva a tua etapa.” No entanto, ele faz um apelo: “Só tenha isso em mente: quanto antes você avançar para a etapa da aceitação e do ‘vamos para cima, vamos para o diagnóstico, vamos para o tratamento’, melhor, inclusive, para essa pessoa que você mais ama aí, que é o seu filho.”
O alívio, segundo ele, não vem da negação, mas da ação. Ver os avanços que o tratamento proporciona traz felicidade e paz não apenas para a criança, mas para toda a família. É um recado de empatia, mas também de urgência. Um chamado para que os pais confiem em sua intuição, naquela “pulguinha atrás da orelha”, e transformem a angústia em movimento. Porque, no final das contas, o maior ato de amor não é desejar um filho diferente, mas aceitar e lutar pelo filho que se tem, com todas as suas particularidades, desafios e potencialidades.
A Busca por Respeito e Tratamento Adequado
Yuri nos mostra que, por trás da “modinha” das redes sociais, existe uma realidade complexa e, muitas vezes, dolorosa. O TDAH não é uma desculpa para a falta de foco, nem um superpoder que garante a criatividade. É um transtorno neurobiológico crônico, com implicações reais e profundas na vida de quem o possui e de suas famílias.
Ao desmistificar o autodiagnóstico, diferenciar o TDAH de outras condições, expor o viés de gênero no diagnóstico, criticar a romantização e o descaso nas políticas de inclusão, e, finalmente, oferecer um caminho de aceitação para os pais, Yuri nos convida a tratar o tema com a seriedade que ele merece.
Sua mensagem é clara: a informação de qualidade é a principal ferramenta contra o preconceito e o diagnóstico equivocado. A busca por profissionais qualificados não é um luxo, mas uma necessidade. E a luta por políticas públicas de inclusão que sejam eficazes, e não apenas ideológicas, é uma responsabilidade de toda a sociedade.
O TDAH, assim como outras neurodivergências, não vai desaparecer com a próxima tendência do TikTok. As crianças, adolescentes e adultos que vivem com o transtorno continuarão a enfrentar seus desafios diários. Cabe a nós, como sociedade, decidir se vamos continuar a tratá-los com base em estigmas e desinformação, ou se vamos finalmente oferecer o respeito, a compreensão e, acima de tudo, o suporte adequado para que possam, apesar da “mochila de pedras”, construir uma vida plena e produtiva.