Criminal

76- Vitimologia Forense

Vitimologia forense em linguagem clara: o que é, como diferencia vitimização de vitimismo, tipos de vitimização, fatores de risco, perfilamento da vítima, prevenção, acolhimento sem revitimizar e o papel do estudo da vítima para orientar investigações e políticas públicas

Vitimologia Forense – Não existe crime sem vítima. Esta constatação simples sustenta um campo inteiro do conhecimento, muitas vezes lembrado apenas como um capítulo da criminologia, mas que merece luz própria: a vitimologia forense.

Em linguagem direta, trata-se do estudo sistemático da vítima, do modo como foi vitimizada, dos fatores que a tornaram mais vulnerável e das marcas que o delito deixa no corpo, na mente e na vida social. É um olhar que sai do foco exclusivo no agressor e recoloca no centro a pessoa que sofreu a infração, sem transformar esse movimento em culpabilização. O propósito é compreender, contextualizar e prevenir.

Na prática investigativa, esse trabalho muda rumos. Há casos em que o perfilamento da vítima funciona como bússola para o perfil do agressor. Há situações em que o histórico da vítima aponta acessos, rotas, horários, hábitos e círculos sociais que afunilam um grupo de suspeitos. E há cenários em que o estudo dos fatores de risco permite construir políticas públicas, protocolos de atendimento e estratégias de prevenção primária e secundária capazes de reduzir a probabilidade de novas violações.


O Que É Vitimologia Forense

Vitimologia forense é a disciplina que estuda a vítima enquanto sujeito passivo de um ato ilícito, sua posição na dinâmica do fato, seus fatores de vulnerabilidade e os efeitos da vitimização. É ciência sobre vítimas e processos de vitimização, com um pé no consultório, outro na rua e outro no fórum.

Ao contrário do senso comum, não se restringe ao crime; abarca também acidentes de trabalho, desastres naturais, abusos em relações de consumo e danos civis, ainda que não exista necessariamente uma infração penal.

Na esfera estritamente criminal, compõe a base de decisões sobre prevenção, medidas protetivas e, inclusive, é uma variável presente na dosimetria penal, quando o magistrado analisa o comportamento da vítima conforme o artigo 59 do Código Penal para graduar a pena do autor.

Esse olhar não transforma vítimas em causa do delito. Ele identifica circunstâncias, escolhas, contextos e interações que influenciaram a ocorrência. Esta diferença é vital. Compreender não é culpar. Compreender é tirar da névoa. É ler a trajetória que levou ao evento e, a partir daí, reduzir riscos, oferecer cuidado e orientar investigações.


Vitimização E Vitimismo

Vitimização descreve processos e circunstâncias que levam alguém a tornar-se vítima. É um guarda-chuva que cobre fatores socioeconômicos, ambiente físico, dinâmicas de gênero, idade, histórico de violência, dependências emocionais ou financeiras e traços psicológicos que, combinados ou isolados, aumentam a exposição a determinados delitos. É um mapa de vulnerabilidades.

Vitimismo, por sua vez, é outra coisa. É a postura crônica de colocar-se como vítima sem sê-lo de fato, ou de hipertrofiar sofrimentos com o objetivo de ter vantagens simbólicas ou materiais. O campo forense trabalha para não confundir os termos. A linguagem importa. Usar “vitimização” quando se quer falar de “vitimismo” distorce a análise e acentua injustiças.


Tipos De Vitimização:
Primária, Secundária E Terciária

A vitimização primária é o impacto direto do ato ilícito. É a lesão que ocorre quando o criminoso age. Acontece no corpo, na mente e no patrimônio, e desencadeia um pós-vida do fato com dores físicas, abalos emocionais e rupturas financeiras.

A vitimização secundária ocorre depois, quando a pessoa vitimada encontra instituições que deveriam acolher, mas reproduzem violência por meio de tratamentos desrespeitosos, descrédito, exigência de recontagem exaustiva do trauma ou formulação de perguntas invasivas e estigmatizantes. Essa etapa exige especial cuidado de quem investiga, interroga, defende e julga. Uma entrevista mal conduzida pode ressuscitar o trauma com a mesma intensidade do ato original.

A vitimização terciária é social. É o estigma que se instala no bairro, no trabalho, na família, nas redes. Aparecem olhares de julgamento, distanciamentos, piadas cruéis, questionamentos indevidos, fofocas que corroem a autoestima e isolam. Quem trabalha com vítimas precisa conhecer estas camadas para desenhar acolhimentos que evitem novas feridas.


Fatores De Vitimização

Os fatores de vitimização são os degraus que, somados, levaram alguém a estar no lugar, na hora e na condição de ser alvo. Eles variam conforme o tipo de violação. Em violência sexual, por exemplo, o fator mais robusto, do ponto de vista estatístico, é o gênero: mulheres são mais vitimadas que homens, independentemente de roupa, horário ou estilo de vida.

Roupa curta não explica violência sexual. As estatísticas mostram que vítimas foram atacadas usando vestido, calça, uniforme, roupas religiosas, roupas esportivas e até pijamas. Transferir a responsabilidade para a vestimenta é cegar deliberadamente os dados.

Em crimes letais decorrentes de conflitos interpessoais, outra configuração aparece. Em brigas de bar, a vítima típica é homem jovem, sob efeito de álcool, em ambiente noturno, em grupos masculinos, com histórico prévio de confrontos. O gênero, aqui, opera como fator de vitimização para homens, expandindo a chance de morrer em contexto de violência espontânea.

Em crimes patrimoniais, escolhas pontuais interferem no desfecho. Reagir a um assalto, tentar desarmar o agressor, agarrar a arma ou discutir com quem ameaça é um passo que eleva abruptamente o risco de homicídio, inclusive em casos envolvendo autor que jamais havia disparado contra outras vítimas. Não é atribuir culpa a quem reagiu; é explicar o porquê das orientações reiteradas pela segurança pública: entregue e preserve a vida.


Do Perfilamento Vitimológico
Ao Perfil Do Ofensor

Há situações em que a vítima entrega, sem perceber, pistas sobre o ofensor. Rotinas revelam acessos. Horários de deslocamento definem janelas de oportunidade. Ambientes de convívio apontam possíveis agressores. Prestar atenção ao modo de vida, aos vínculos, às conversas e às mudanças abruptas de hábito permite montar um quadro que, somado a dados materiais, delimita suspeitos.

O perfilamento vitimológico começa por reconstruir a linha do tempo da vítima nos dias, semanas e meses anteriores ao fato. Em seguida, examina sua rede de relações afetivas, familiares, profissionais e virtuais. Observa padrões de risco e hábitos que, repetidos, abriram flancos. Investiga se houve mensagens, convites, ameaças, perseguições ou tentativas de controle.

Analisa se a vítima foi previamente testada por aproximações “inofensivas”. Cruzar essas informações com achados técnicos – imagens, dados de geolocalização, vestígios – transforma o perfil de um desconhecido em silhueta identificável.


Interação Com O Sistema De Justiça

Investigar com foco na vítima exige protocolos de escuta qualificada. Entrevistas devem ser planejadas para reduzir repetições, interromper gatilhos traumáticos e permitir pausas. O local precisa ser acolhedor e reservado. A linguagem tem de ser clara e respeitosa.

Perguntas não podem insinuar que a vítima é responsável pelo que sofreu. Em casos envolvendo crianças e adolescentes, é imprescindível aplicar metodologias específicas, com profissionais treinados em desenvolvimento infantil e técnicas de entrevista forense. O objetivo não é extrair confissões, e sim colher narrativas sem semear novas dores.

A vitimologia também olha criticamente para a rede de proteção. Pergunta se as medidas protetivas funcionam, se os prazos são cumpridos, se o atendimento psicológico está disponível, se a proteção policial é efetiva, se o transporte e o acolhimento são ofertados com segurança. Há uma dimensão avaliativa que é pública: medir o que se faz, publicar resultados, ajustar rotas e cobrar responsabilidade.


Prevenção E Políticas Públicas

Conhecer fatores de vitimização é usar ciência para prevenir. Quando se entende que dependência emocional e financeira mantêm mulheres em relacionamentos abusivos, políticas públicas passam a ofertar renda, capacitação profissional, moradia temporária e atendimento psicológico.

Quando se verifica que reagir a assaltos aumenta letalidade, campanhas massivas orientam a não reação e ensinam caminhos de preservação de vida. Quando se percebe que revitimização institucional é regra e não exceção, tribunais e delegacias reformam espaços, treinam equipes e ajustam fluxos para acolher sem violentar.

Na prevenção terciária, o foco é reduzir o dano após o fato, com reabilitação física e emocional, reparação, apoio jurídico, reinserção no trabalho e combate ao estigma. Vítimas indiretas – familiares e pessoas próximas – também precisam de suporte, pois a violência se irradia para além de quem sofreu diretamente o ato.


Estudos De Caso

O gesto de reagir durante um roubo pode transformar um “perdeu, perdeu” em letalidade. A análise vitimológica, ao revisar o histórico do autor, percebe que antes ele não disparava. O elemento novo foi a tentativa da vítima de segurar a arma.

Esta observação não serve para moralizar a vítima, mas para reafirmar o sentido prático de orientações de segurança: ceder um objeto é doloroso; perder a vida é irrecuperável.

Em feminicídios, o fio condutor é quase sempre um rastro de violências anteriores. Insultos repetidos, humilhações constantes, controles de celular e amizades, empurrões, tapas, ameaças indiretas, “testes” de ciúmes.

O estudo dos fatores de vitimização mostra, com clareza, que a maioria das mulheres assassinadas passou por uma sequência de violências psicológicas e físicas. Identificar cedo tais sinais permite acionar rede de proteção, quebrar o ciclo e impedir que a escalada alcance o ponto extremo.


Vitimologia Não Se Resume Ao Crime

É um erro reduzir o campo a delitos. Uma vítima pode ser alguém que sofreu um acidente de trânsito, um trabalhador que adoeceu por condições precárias, uma consumidora enganada por publicidade abusiva, uma família atingida por deslizamento de encosta.

Nestes cenários, o olhar vitimológico também é útil. Ele mapeia fatores ambientais, falhas de fiscalização, omissões do poder público e condutas empresariais que criam cenários de risco. E, mais uma vez, desenha respostas: mudanças urbanísticas, reforço de inspeções, protocolos de segurança ocupacional, educação para consumo consciente e para o trânsito.


O Profissional Que Estuda Vítimas

É curioso que quase não se veja no Brasil alguém se apresentar como “vitimólogo”. O trabalho existe, é executado por criminólogos, psicólogos criminais, assistentes sociais, peritos e defensores de direitos humanos, mas a identidade profissional específica ainda engatinha. O que faz quem trabalha na área.

Entrevista vítimas e pessoas próximas, reconstrói contextos, cruza dados pessoais com indicadores públicos, escreve relatórios que podem influenciar investigações e decisões judiciais, propõe protocolos de prevenção e acompanha políticas de atendimento. Há espaço de atuação em delegacias especializadas, promotorias, defensorias, varas criminais, serviços de acolhimento, organizações da sociedade civil e universidades. Ao assumir o nome, o campo ganha visibilidade, atrai formação e cria parâmetros de qualidade.


Linha De Base Da Vítima

Em análises comportamentais, um cuidado é essencial: construir a linha de base. Trata-se de entender como a vítima costuma agir, falar e se movimentar em contextos neutros, para então observar quebras quando o tema entra em campo sensível. Este conceito, aplicado com mais frequência ao suspeito, vale também para a vítima. Em depoimentos, alterações abruptas de tom, silêncios inesperados, risos fora de lugar e retrações podem sinalizar temas de medo, vergonha ou influência de terceiros. Ler tais sinais com prudência evita interpretações apressadas e protege quem está diante do Estado para pedir justiça.


Redes, Privacidade E A Exposição Da Dor

A vitimização hoje se expande no espaço digital. Um crime cometido fora da rede pode ganhar nova camada quando imagens são vazadas e compartilhadas sem consentimento. A vitimologia contemporânea precisa lidar com privacidade, segurança de dados e o fenômeno da humilhação pública em massa. Serviços de apoio devem orientar sobre preservação de provas digitais, protocolos para remoção de conteúdo e medidas legais cabíveis, sempre atentos para não culpar a vítima por ter confiado em quem não merecia.


Ética Da Linguagem

Palavras constroem realidades. Dizer que a roupa de uma mulher “provocou” o agressor é mais do que erro técnico; é violência simbólica. Sugerir que “se estivesse em casa, nada teria acontecido” é ignorar que crimes acontecem também dentro de casa, em horário diurno, sem álcool e sem festa. A linguagem profissional deve ser precisa, empática e baseada em evidências. Isso não é mero formalismo. É parte do tratamento e da justiça.


Como A Vitimologia Orienta O Atendimento

Do acolhimento inicial à última audiência, um atendimento informado por vitimologia tem etapas claras, ainda que não se apresentem como um roteiro rígido. Começa por garantir segurança e escuta sem interrupções. Prossegue identificando riscos imediatos e disparando medidas protetivas quando necessário.

Em paralelo, mapeia necessidades médicas, psicológicas e jurídicas. Informa direitos, apresenta caminhos possíveis e dá tempo para que a pessoa escolha. Mantém comunicação transparente sobre prazos, procedimentos e expectativas realistas. E acompanha, sem invadir, o retorno à rotina, em especial quando há crianças e adolescentes no entorno.


Quando A Vítima Pode Indicar
A Autoridade Sobre A Responsabilidade

Em sentenças, a análise do comportamento da vítima aparece como uma das circunstâncias judiciais avaliadas. O raciocínio aqui é sutil e técnico. Não se trata de punir a vítima, mas de medir se a conduta da pessoa ofendida, em casos muito específicos, funcionou como gatilho direto para a resposta violenta desproporcional do autor, especialmente em crimes de menor potencial ofensivo ou em brigas recíprocas. Fora desses contextos, o uso dessa circunstância demanda extremo cuidado para não transformar a análise em inversão de culpa. A vitimologia séria rejeita distorções e está atenta a elas.


Comunidades E Redes De Suporte

Vítimas não se recuperam sozinhas. A família, os amigos, os vizinhos, os colegas de trabalho e de estudo podem ser a diferença entre retraimento e retomada. Comunidades capazes de acolher sem julgar, de ajudar com tarefas práticas e de acompanhar consultas e audiências, reduzem a solidão e ampliam a adesão aos tratamentos. Programas públicos que fortalecem redes locais – de centros de referência a grupos de apoio – são investimento com retorno humano e financeiro, já que previnem adoecimentos mais graves e custos de longo prazo.


O Que A Investigação Ganha
Quando Coloca A Vítima No Centro

Investigações ganham precisão e velocidade quando entendem rotinas, horários e relações da vítima. Ganham consistência quando evitam revitimização e preservam depoimentos de qualidade. Ganham legitimidade quando tratam a vítima com respeito e lhe dão notícias sobre o andamento do caso. Ganham efetividade quando escutam a comunidade onde a vítima vive e retiram dali informações que não aparecem nos autos. E ganham humanidade quando olham para além do processo e ajudam a costurar a vida que ficou rasgada.


Formação E Pesquisa

O Brasil precisa formar mais gente para trabalhar com vitimologia forense. Cursos de psicologia, direito, serviço social, segurança pública e criminologia podem oferecer componentes curriculares específicos, estágios supervisionados e núcleos de pesquisa aplicados.

Há espaço para estudos sobre revitimização institucional, análise de eficácia de medidas protetivas, impacto de campanhas de prevenção, desenho de protocolos de entrevista e avaliação de políticas públicas. Há também campo aberto para tecnologia aplicada ao cuidado, do registro de depoimentos com menor dano emocional ao desenho de fluxos digitais que informem a vítima, preservando a sua privacidade.


Compreender Para Proteger

Estudar a vítima é tão importante quanto estudar o agressor. O olhar vitimológico não desculpa o autor, não transfere culpa, não reduz complexidades. Ele ilumina, aponta atalhos de prevenção, funda políticas, melhora investigações e humaniza a justiça. Em última instância, é um compromisso ético com quem sofreu e com quem pode sofrer amanhã.

Ao compreender os fatores de vitimização, ao distinguir vitimização de vitimismo, ao evitar revitimizações e ao transformar conhecimento em ação, instituições e profissionais cumprem, de fato, a promessa de proteção.

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